David vinha correndo na direção do prédio. Ele sabia que seria problemático passar pela multidão.
Parou perto de uma loja e olhou ao redor. Viu que no alto do prédio vários fachos de luz iluminavam o céu.
“Mas que porra é essa?” – Ele se perguntou. Aquele era o único ponto de luz artificial que ele via em muitos dias.
Subitamente David Carlyle ouviu o eco de um tiro no ultimo andar.
“Puta merda! Alice!” – Ele pensou.
David viu a multidão de zumbis ao redor do prédio. Tinha que encontrar uma forma de chegar lá sem que os mortos sentissem o cheiro do sangue e da carne.
David entrou na loja. Correu até o caixa. Encontrou uma sacola grande. Ele jogou a mochila na sacola e amarrou com força o plastico ao redor da mochila.
Em seguida pegou outro e amarrou em volta, protegendo ainda mais o pacote precisos de carne humana fresca.
Saiu para a rua disposto a testar a funcionalidade dos sacos. David andou até um zumbi. Passou lentamente perto do zumbi pronto para correr se fosse necessário. Mas op zumbi nem se moveu. Continuou parado.
“Yes! Funcionou!” – Ele pensou.
David correu na direção do prédio. Passou correndo através da multidão de mortos que gemiam andando de um lado para outro sob o prédio da editora.
David saltou a barricada de carros.
Correu com a mochila envolta nos sacos pela rua estreita e chegou até o pequeno patio interno. Ali estava um zumbi parado. Era uma criança de uns treze anos, zumbizada, Andava gemendo e tremendo de um lado a outro. David ficou com pena.
“Isso não é justo”.
David se aproximou do jovem zumbi. Então deu uma machadada na perna do menino, que caiu feito uma árvore. David pisou na cabeça dele e desferiu uma machadada na garganta do morto, separando a cabeça do corpo. Em poucos segundos, o corpo do garoto parou de se debater e estancou. David pegou o carrinho de compras que estava em frangalhos, todo amassado no chão.
David Carlyle correu com o carrinho para o quartinho. Fechou a porta, subiu no carrinho e usou o machado para levantar a tampa do recorte no forro. A mangueira de incêndio caiu sobre ele. David lançou o machado para o alto e agarrou firmemente na mangueira. Pendurou-se nela e subiu, até agarrar no degrau chumbado na parede. David subiu até alcançar o machado e fechou a tampa de acesso ao quartinho.
Quando David chegou no quinto andar, viu que a porta estava trancada. Não havia sinal de Alice em parte alguma.
David olhou com cuidado, forçando os olhos na escuridão. Então ele pisou em algo que estalou. David abaixou-se e pegou a caneta. Ela estava na entrada do banheiro, e abaixo dela estava um papel. David correu com o papel até a janela, onde a luz da lua iluminou tudo e ele pôde ler:
David,
Tem gente no prédio. Alice
David lembrou-se do tiro que ouviu ser disparado no alto. Ele correu com o machado e começou a desferir golpes na porta.
…
Lá em cima, Alice estava nua na cama. Estava bêbada. Sentia tudo rodar ao seu redor.
Paul chegou perto, mas não deitou perto dela. Ele apenas desabotoou a calça e tirou o pênis para fora.
Alice ficou olhando pra ele, com uma expressão de pavor.
-O que você vai fazer? – Ela perguntou aflita, tentando se cobrir com o lençol.
-Vou me satisfazer. Depois você terá o mesmo destino dos outros.
-Outros?
-Sim. Os outros.
-Então é tudo mentira?
-Em parte é. Sabe como é. Todo mundo precisa comer. Principalmente eu.
-Mas então quer dizer que…
-Verdade. O seu bife era um pedaço do Ney.
Alice olhou para os freezeres.
-Então a conversa de açougue era balela?
-Era. Estou comendo gente porque não há como sair desta merda. Não há mais comida.- Ele assumiu.
-Canibal! Monstro!- Alice gritou. Ela tinha vontade de vomitar.
-Pode me chamar do que quiser, gostosa. O fato é que eu vou te comer. E será duas vezes! – Paul riu maníacamente. -Mas antes, vou fazer um cinco contra um aqui. Fica paradinha aí e abre bem essas pernas. Me deixa ver este grelinho molhado! Anda porra! Ou vou atirar! Um… Dois…
Alice abriu as pernas.
-Agora mete o dedo nessa racha! Anda!
Ela ia obedecendo. Enquanto com uma mão Paul segurava a arma, na outra tinha o pênis. O cão apenas olhava a cena com a expressão estúpida.
Alice pensou em David.
Subitamente, Lolita começou a latir descontroladamente. Paul largou o pinto e segurou a arma apontando para o corredor.
-Que foi, Lolita? Que foi?
O cão estava latindo muito.
A porta se abriu e dela surgiu o zumbi com o machado na mão.
-Não! – Paul gritou assustado. Disparou duas vezes contra a criatura. Mas estava nervoso demais para conseguir mirar. Errou o primeiro e o segundo tiros.
Alice mais do que depressa, agarrou o travesseiro da cama e arremessou-o contra Paul. O travesseiro atingiu a arma desviando a pontaria dele.
-Maldita! – Ele gritou desvencilhando-se do travesseiro. Apontou a arma pra ela. Mas não teve tempo de atirar. O machado sibilou no ar e decepou-lhe o braço.
Paul ficou gritando em choque ao ver o braço amputado caído no chão com o revolver na mão.
-Ahhhhh! Nãaããããããão! – Paul gritava desesperado. Até tentou correr, mas era tarde. O zumbi agarrou Paul pelo pescoço e o lançou do parapeito.
Paul girou no ar gritando enquanto seu corpo bailava no vazio. Ele atingiu o solo e explodiu numa poça cremosa de carne e sangue, que imediatamente foi soterrada de zumbis famintos.
David virou-se para Alice. Ela estava nua na cama. Alice saltou da cama, correu e abraçou David apertado.
-Meu amor. Meu amor! – Era tudo que Alice dizia.
O zumbi olhou ao redor.
O cão ainda estava a latir. David avançou sobre o cão, mas Alice o impediu.
-Não. Deixa que essa daí eu faço questão. – Falou Alice.
Ela pegou a arma na mão decepada de Paul. Mirou no cão e deu só um tiro. O animal morreu na hora. Alice agarraou o corpo gordinho de Lolita e lançou do parapeito.
-Vai, junte-se ao seu dono, bicho maldito!
Os dois abraçam-se novamente.
David olhou para cima e viu a pirâmide de luz. Olhou ao redor e viu os freezers, o fogão. A cama, o radio…
David apontou para o roupão de Alice no chão. Ela disse que teve medo que Paul a forçasse a fazer sexo com ele, mas apenas se masturbou.
David andou pelo alto do prédio. Olhou ao redor. David Carlyle tirou a mochila das costas e estendeu a mesma, envolta nas sacolas plasticas para ela. Alice se assustou ao ver os pedaços de carne, mas ficou feliz ao descobrir a carne enlatada.
-Spam! Que bom!
Alice o convidou para jantar. David sentou-se à mesa. Alice ainda nua, aqueceu a carne enlatada na frigideira. Ela pegou um pedaço enorme do fígado do alpinista e colocou com cuidado num prato. Em seguida, serviu a carne para David.
Alice tomou um gole de vinho. David pegou o bloco do bolso e escreveu algo. Depois estendeu para Alice.
Como nos bons tempos da cabana.
-Espero que a noite termine do mesmo jeito daquela. – Ela disse, esfregando o pé na perna do zumbi, sob a mesa.
Alice comia carne enlatada e David mastigava com vigor o bife de gente morta feito com o fígado do alpinista. David sentia um grande prazer. Se sentia forte novamente. Revigorado. O efeito da carne humana no corpo dele parecia um pequeno milagre.
Alice saiu da mesa e sentou nua no colo dele. Ela beija o pescoço do zumbi. Ofereceu mais vinho a ele. David bebeu o vinho. Alice pegou o pedaço do fígado sobre a mesa e derramou o sangue sobre os seios dela. O sangue escuro escorreu sobre a pele dela, lambuzando-a.
David agora lambia o sangue no corpo da mulher. Alice deliciava-se com a língua fria de David percorrendo seu corpo. Ela deitou sobre a mesa, empurrando pratos, garrafa, taças, talheres e guardanapo para o chão.
David lambia o corpo da moça. Alice sentia o sangue a lambuzar e foi ao delírio com seu corpo deslizando meladamente contra o corpo do zumbi.
David não conseguiu mais conter a ereção.
Alice saiu da mesa, empurrou David na cama. Em seguida, saltou felinamente sobre ele. Ela tirou sensualmente a roupa do zumbi. E em seguida, deitou junto dele. Eles olharam o céu estrelado. As estrelas pareciam pular. A noite soprava uma brisa agradável.
Alice saltou sobre David. Ela o cavalgou. David beijou a mulher e os dois sentiram o gosto do sangue. David faz amor com Alice na cama de Paul. Os dois chegaram juntos ao clímax.
-Eu te amo muito, sabia? – Alice gemeu baixinho na orelha de David.
Alice se aconchegou nos braços de David e depois de algum tempo olhando as estrelas no céu, dormiu.
David também fechou os olhos. Pensou em como seria bom se ele pudesse dormir. Sentia-se pleno ao lado da mulher que ele amava.
Então antes que pudesse se surpreender, sentiu seu corpo afundando lentamente e perdeu os sentidos. Dormiu.
…
Quando recobrou lentamente a consciência, havia um zumbido no ouvido dele… O calor era forte. Quando David abriu os olhos, sentiu o sol no rosto. Estava quente. O sol estava a pino. Bem sobre ele. David olhou para o lado e não viu Alice. Estava sozinho na cama.
“O que aconteceu? Tudo apagou. Onde está Alice?” – Pensou.
David se levantou e andou pelo terraço.
“Ela deve ter ido ao banheiro.”
David sentia as coisas rodando. Estava tonto. Viu os lençóis antes impecavelmente brancos todos manchados de sangue e lembrou-se da noite de prazer com Alice naquela cama. David olhou para o céu e viu as nuvens. O sol surgia entre elas. Pela posição do sol, calculou que a hora estava perto do meio dia.
David saiu pela cobertura, em busca de Alice, mas ela havia sumido.
Aquilo era estranho. Alice havia desaparecido. Ele foi em busca dela. Subiu pela escada em direção ao heliporto, onde estavam os holofotes. Ao chegar lá em cima, deparou-se com Alice, nua, olhando para a paisagem distante.
David aproximou-se por trás dela e a abraçou a moça com carinho, pela cintura. Alice não reagiu.
Soltou apenas um leve gemido. David se assustou e olhou para ela. Alice tinha os olhos revirados. Estava fria, numa espécie de transe.
“Puta merda! Ela virou um zumbi!”
David sentou no chão do heliporto. Não podia acreditar no que seus olhos viam.
Alice estava parada ao sol. Tinha o mesmo olhar perdido dos mortos. David olhou pra ela. Dava pra ver que ela já começava a perder a cor. A ponta dos dedos já estava amarelada.
Se ele pudesse, teria chorado. Sentia-se responsável por aquilo. E agora? O que fazer?
David levantou-se foi até Alice e a sacudiu. Ela não disse nada. Nem gemeou ou teve qualquer reação. Era como sacudir uma boneca.
David estava desolado. Alice estava morta. Ao contrário dele, que fosse por qual motivo fosse, ainda estava preso naquele corpo de zumbi, Alice havia partido. A doença nela teve o mesmo efeito que tinha nas outras pessoas. Alice ficou retardada.
David agarrou a moça pela mão e saiu arrastando. Ela foi com ele, sem esboçar reação.
David foi até a parte da cisterna, pegou o vestido da mulher do fazendeiro. Vestiu em Alice. Ele também vestiu a roupa preta e o sobretudo de Edson. Pegou o machado numa mão e Alice na outra. Desceu as escadas.
David ia puxando Alice pelo braço, escada abaixo. Enquanto andavam em silêncio, na escuridão do prédio, David pensava sobre o que fazer com ela. Seus planos teriam que mudar. David já não poderia mais levar Alice para o abrigo dos sobreviventes como estava planejando. Agora restava apenas aquele corpo. Enquanto descia as escadas carregando a mulher, David Carlyle pensava se devia ou não levar Alice com ele. Talvez fosse melhor deixá-la no prédio. Talvez fosse melhor executá-la de uma vez com o machado e acabar com tudo. O corpo era como uma capsula vazia onde a essência de Alice já não estava mais contida.
Quando chegaram no quinto andar, David estava decidido a se livrar do corpo da zumbi.
Puxou a moça pelo braço até a sala. Parou na frente dela com o machado. David olhou bem nos olhos de Alice e sentiu um profundo remorso por ter causado aquilo. Olhou a mulher, ela continuava linda, apesar de morta.
David empunhou o machado disposto a liquidar com ela. Teria que ser um golpe rápido, certeiro, na cabeça, ou talvez no pescoço. Pensou em Alice como um perfume raro num belo frasco de perfume. Quando o líquido preciso se esvai, só resta o frasco, a lembrança morta de algo realmente importante, que já não estava mais lá dentro. E o destino dos frascos de perfume, por mais belos e bem feitos que eles sejam, é o lixo.
David puxou o machado para trás e preparou-se para desferir o golpe. Alice olhava para o machado que iria esfacelar seu crânio sem esboçar qualquer reação.
David não conseguiu.
Jogou o machado longe e saiu de perto dela. Foi até a janela. Ele não podia. Não podia fazer aquilo com ela. Ele sabia que Alice já não estava mais lá naquele corpo, que agora ela era apenas carne animada quimicamente, mas as lembranças, essas nunca iriam acabar. David não queria ficar com a lembrança de dar uma machadada na mulher que amava. Ele precisava dar ao corpo dela um final digno. Em favor da memória da mulher que amou, ele não iria largar o corpo dela em qualquer lugar.
Olhou para a rua. Já havia bem menos mortos andando nos arredores do prédio. David pegou o machado, agarrou Alice pelo braço, e foi para as escadas que davam no saguão. A escada tinha uma grossa grade de aço com um cadeado enorme fechando o acesso.
David mirou no cadeado e desferiu três violentos golpes com a cabeça do machado. No terceiro golpe, o cadeado se partiu. Ele abriu o portão gradeado e desceu as escadas, puxando Alice.
Minutos depois, David estava nas ruas, puxando Alice pela mão. Passaram por entre os mortos que cambaleavam sem destino. Nos cantos eles viam zumbis parados e trêmulos. Eram os que não comiam.
Agora David e Alice também caminhavam pela cidade sem destino. Não havia mais qualquer sinal de emoção ou afeto entre eles. Eram apenas dois corpos, de mãos dadas, andando pela cidade.
Eventualmente, David via ao longe os zumbis se acotovelando em bolinhos. Ele sabia o que aquilo significava. Eles haviam conseguido algo para comer.
A cidade estava infestada de urubus, baratas, e muitos ratos. Milhões deles. Os ratos ploriferavam velozmente e com a quantidade enorme de comida, ossos e sujeira por todo canto, eles tomaram conta da Terra. O planeta agora era deles.
David parou com Alice perto da entrada de um cinema. Na placa, o nome de um filme. Mais um block buster.
O zumbi sentiu saudades do tempo em que ainda era gente, e podia ir ao cinema.
Do outro lado da rua, viu um parquinho. Cerca de umas quinze crianças estavam lá. A maioria em pé, na areia, olhando para o nada. Mas umas duas ou três estavam nos brinquedos.
David observou a tendência de alguns zumbis que reproduzirem mecanicamente certos comportamentos. Havia uma criança loura que era movida de leve pelo vento, num balancinho. Olhando por trás, parecia até uma menina sã. Mas David sabia que não era, pois qualquer carne limpa num raio de quilômetros do centro já havia sido comida.
Triste ver uma criança morta balançando num brinquedo. David olhou para Alice e se perguntou até que ponto ele também não estava a repetir essas ações instintivas humanas. Por que havia vestido a moça? Num mundo onde não restava nada senão pedaços de corpos pútridos andando por aí, buscando carne para comer, qual o sentido de colocar a roupa num zumbi?
“Eu podia ter deixado ela pelada. Pelo menos ia ser melhor de ver do que este vestido de bolinhas horrendo.” – David pensou.
David sentou Alice no banco da pracinha. Sentou ao lado dela.
Ela não tinha nenhuma reação.
“Que merda. Olha só pra você. Olha só no que deu…” – David pensou olhando a moça bonita.
Deu um tapa na testa dela.
Alice olhou para a mão dele, reagindo ao tapa, mas não esboçou qualquer reação. Não se protegeu, não abaixou. Ficou apenas olhando. David deu outro tapa. Ela repetiu o comportamento.
“…Uma completa idiota.” – Ele pensou.
“Eu posso passar o dia dando tapas na testa dela e ela não vai reagir.”
David ficou ao lado dela, sentado no banco da pracinha, vendo os zumbizinhos balançando ao sabor do vento.
Tudo estava parado, e o silêncio se estendia em longos e arrastados períodos. Sem Alice viva, a agitação da vida deles havia ganhado outro ritmo. David não pretendia se afastar muito do prédio, pois sabia que lá no alto nos freezeres havia carne humana, e isso iria garantir sua sobrevivência sempre que ele precisasse.
E foi assim que os dias foram passando. David todo dia descia com Alice, até a pracinha, onde olhavam as crianças paradas no parquinho como pequenas estátuas. Eventualmente, David trazia embulhado em plastico, pequenos nacos de carne, que dava para a menina loura do balancinho.
Semanas após semanas aquela rotina se repetia. Eventualmente estava sol, eventualmente estava chovendo. Ou ventando. Mas David e Alice iam até o mesmo banco da pracinha no final da rua, onde após ficar algum tempo contemplando o nada, olhando para as árvores balançando e o laguinho de peixinhos. Eventualmente pulava um peixinho ou outro. Muitos dias eram iguais e após semanas e semanas repetindo aquilo, como um filme, David já não tinha mais a noção do tempo. Ele só conseguia mensurar a passagem dos dias porque lentamente a carne do freezer foi acabando.
A menina do balanço havia sido domesticada. Ela agora seguia David e Alice sempre que eles iam até o predio.
David não pensava naquela vida como algo tão ruim. Era solitário, mas ao mesmo tempo ele tinha uma companhia. Eventualmente, sobretudo quando comia muita carne, David sentia-se são. Alice também se tornava mais e mais ativa sempre que David dava carne demais para ela. Por precaução, e para evitar o frenesi, David sempre trancava as duas na sala de reuniões. Ele ia até o andar do terraço sozinho para pegar a carne. Ele havia tomado esta decisão quando num dos primeiros dias, Alice o viu pegando a carne. Quando ele abriu o freezer, e o cheiro gelado do sangue inundou o ar, Alice correu grunhindo até o mesmo e saltou com meio corpo lá pra dentro, comendo como um animal. David precisou surrá-la para conseguir afastar Alice de dentro do freezer.
A cena havia sido muito forte pra ele. Durante dias David não esqueceu daquilo. Foi naquele dia que ele realmente perdeu todas as esperanças de que a mulher que amava fosse diferente. Ela era tão zumbi quanto o faquir da machadada nas costas, ou o gordão da delicatessen.
Num dos dias em que ele havia subido para buscar a carne, ao voltar e abrir a porta da sala de reuniões, deparou-se com uma cena peculiar.
Alice estava de mãos dadas com a menina do balanço.
David se surpreendeu. Como era possível?
Aquilo ficou na cabeça dele por um tempo, e ele começou a teorizar sobre o fato de arrastar Alice para cima e para baixo de mãos dadas. Talvez ele tivesse criado um mecanismo de reflexo simples nela e na busca por alguma forma de conforto, ela tivesse agarrado na mão da menina. O fato é que quilo passou a se repetir. Sempre que David deixava as duas sozinhas, uma agarrava na mão da outra.
Um dia, David resolveu fazer uma experiência. Ao se levantar do banco da praça, largou Alice para trás. Ele tinha esperanças que a moça se levantasse, que ela o seguisse na direção do prédio, onde sabia que iria ganhar carne. Mas ela não fez nada disso. Nem a menina do balanço.
David foi até o prédio, pegou a comida, colocou nos sacos e voltou. A cena estava exatamente parada do jeito que ele havia deixado. Então no dia seguinte, ele repetiu aquilo e durante uma semana, passou a deixar Alice no banco da praça. Arrastar a moça era trabalhoso, era lento e cansativo. Por estar sozinho, ele podia correr pelas escadas e fazer as coisas mais rapidamente.
Certo dia, David deixou Alice para trás, no banco da pracinha como vinha fazendo. Ele foi até o prédio. Pegou a carne. Colocou no saco plastico. E retornou.
Quando retornou, não havia sinal de Alice. O banco da praça estava vazio. A menina loura continuava no balanço, mas Alice havia sumido.
“Ué. Cadê ela?” – David se perguntou. Ele olhou em volta. Não havia sinal de Alice.
David andou pelas cercanias do parquinho, tentando ver se encontrava Alice, mas não viu nada.
“Porra, onde que ela se meteu?” – David estava encucado.
Alice nunca havia demonstrado qualquer sinal de independência. O fato de David alimentar a mulher mantinha a dor da zumbificação em permanente estado de dormência. Isso fazia com que ela se mantivesse totalmente submissa e apática. Os zumbis só ficam ativos em busca de comida e por alguma razão desconhecida, ela não estava ali.
David foi até o prédio, refez o caminho, mas não viu sinal da moça.
“Mas que merda. Eu perdi a Alice.” – Pensou.
David tinha medo que ela tivesse saído andando por aí. Seu medo era plenamente justificável. Em sua ronda pelo centro em busca de ajuda dias atrás, David havia testemunhados atiradores estourando a cabeça de zumbis por mera diversão. David pensou que talvez uma horda de mortos tivesse passado por ali, e Alice acabou se juntando a eles.
Ela podia estar em qualquer lugar da cidade e não haveria nada que ele pudesse fazer. Não havia para quem pedir ajuda. David passou a vagar pelos arredores do coentro, sempre em busca de ver Alice.
Dia após dia, noite após noite, ele perambulava pela cidade tentando encontrá-la. Passaram-se vários dias de busca, sem sucesso. Mas num desses dias, David viu um pedaço do vestido de bolinhas voando no vento.
David correu até o local onde ele caiu e constatou que era mesmo o vestido da fazendeira ruiva.
Alice devia estar por perto.
Ele passou então a entrar nos prédios e sempre que a entrada estava bloqueada, David Dava um jeito de conseguir uma entrada. Fosse saltado de uma marquise para outra, fosse invadindo as construções pelo esgoto. David sabia que havia vários dias que Alice estava sem comer carne humana e à aquela altura, ela estaria muito fraca, provavelmente estática, tremendo violentamente, sentindo a pior dor que poderia sentir. David sentiu-se grato pela primeira vez ao fato da mulher não ter consciência da própria existência.
Ele havia adentrado diversos prédios, sem sucesso. Mas num dia, a sorte mudou.
David notou uma casa de dois andares, que era espremida entre dois prédios. A casa era cinzenta, cheia de pichações, e as janelas do andar de cima tinham marcas de fuligem, indicando que já havia sido incendiada. No pequeno jardim da frente, uma árvore seca dava um aspecto assustador ao lugar.
David resolveu entrar na casa. A porta estava trancada com uma corrente. Aquilo era altamente suspeito.
David então resolveu subir na árvore seca, de onde saltou para o telhado do beiral da varanda. E dali conseguiu adentrar uma das janelas. O andar de cima estava todo escuro, carbonizado. Ele andou entrando nos cômodos, e tudo era escuro. O cheiro de queimado ainda estava presente. Havia corpos carbonizados no que restava das camas de ferro. Certamente a casa pertencia a alguma família ou grupo que cometera suicídio coletivo. À medida que avançava pela casa, David notou que o fogo não havia se alastrado, e destruíra apenas parcialmente os dois cômodos do andar de cima.
David viu uma escada de madeira no final do corredor e desceu para o primeiro andar. Ele estava muito sujo.
Havia uma porta marcada com um X vermelho, sem fechadura ou maçaneta, que estava fechada com um maço de folhas de jornal dobradas. David empurrou a porta e levou um susto.
Naquela sala estavam quatro toneis. Em cada um deles havia uma mulher. Todas elas eram zumbis. Algumas estavam em piores condições que outras. Mas todas eram bonitas. Ali estava Alice, ao lado de uma negra, uma oriental muito bonita e uma jovem menina que não devia ter mais que treze anos. Todas elas estavam do mesmo jeito. Nuas. Amarradas de bruços nos tonéis.
Alice estava atada com cordas nos braços e nas pernas. Estava presa de bruços nu dos tonéis. Nua.
Ao redor da sala, David viu caixas e caixas de camisinha. Várias seringas também estavam espalhadas pela sala, jornais velhos, um colchão que era apenas espuma e centenas de latas de cerveja. Baratas corriam por todos os lados. Tinha inúmeros preservativos estavam jogados pelo chão, ao redor do latão.
David olhou a cena e percebeu que alguém havia raptado Alice, levado para aquele lugar decadente no final da rua. Alice não estava trêmula. Era sinal de que ela vinha sendo alimentada constantemente.
David olhou ao redor. Foi até Alice. Ela estava com um pano grosso cortado do vestido amarrado à boca. Certamente para que não pudesse morder. Ela rosnava baixinho.
David olhou para ela no tonel.
“Pobre coitada. Nem depois de morta…” – Ele pensou. Foi até o corpo e começou a usar a lâmina do machado para tentar libertá-la.
Então surgiu um barulho no fim do corredor. Alguém estava abrindo as correntes. David pegou o machado e correu pelas escadas para o andar de cima, na tentativa de se esconder.
Ocultou-se num banheirinho infecto. De lá ele escutou a voz de dois homens. Eles pareciam nervosos e estavam discutindo.
-…Você tem que parar com esta merda, cara.
-Porra, não enche, cara. Eu injeto o quanto eu quiser. Vai tomar no seu cu!
-Cara isso vai te matar, Ramón.
-Eu tô te pedindo dinheiro pra comprar? Eu te pedi dinheiro emprestado, seu bosta? Não, né? Olha em volta, pau no cu! O mundo acabou, cara. ACABOU! Eu uso o que eu bem entender e você não tem nada com isso.
-Cê que sabe, Ramón. Quem avisa amigo é. Eu só quero ver o que você vai fazer quando a droga acabar. Quando não tiver mais o que injetar.
“Viciados” – David pensou. – “Eles estão usando o prédio como uma junk house…” – Lá em baixo, a discussão continuava.
-Adbul, não enche o meu saco. Vai comer a sua gostosa lá, vai. Me deixa aqui curtindo um barato. Toma, pega aqui a carne delas, ó. Leva lá e me deixa em paz.
Houve um período de silêncio.
David não escutava nada no andar de baixo já tinha vários minutos.
David saiu do banheirinho e olhou pela fresta da escada. De lá ele viu um cara de chapéu preto, que estava enfiando uma agulha no braço.
David ficou olhando e lembrou-se de quando era um viciado assim. Vivia pela droga. Vendia drogas para sustentar seu vício. Quando não tomava a droga, David sentia a pressão baixar, e era uma merda aquilo, pois ele passava mal, vomitava, suava frio, e não achava a maldita veia. Nesses casos, algum amigo precisava injetar a heroína direto na carótida dele. David sabia a escravidão horrenda que a droga causava. Ele sabia que sua vida de zumbi era muito similar a vida de um viciado em heroína.
O cara estava agora fora do ar. Estava de olhos fechados, deitado num canto do corredor, um sorriso bobo no rosto. Ao lado dele, havia um fuzil M16.
David desceu em silêncio. Olhou em volta. Era mesmo só os dois. O viciado parecia mexicano. Tinha a pele bastante castigada pelo sol. Ele tinha uma cicatriz feia na cara. David chegou perto, e o cara escutou os passos, mas não abriu os olhos.
-Abdul… Já falei, cara. Me deixa… Me deixa em pazzzzzzz. – Disse, doidão.
David ergueu o machado e já ia desferir o golpe quando desistiu. Ele cuidadosamente tirou o chapéu preto da cabeça do mexicano e colocou na dele. Então o sujeito abriu os olhos.
-Mas… Que merda é essa Abdu… SANTA MÃÃÃÃÃÃE DO CÉU!
David deu a machadada na cabeça do viciado. Os miolos espirraram na parede. David ficou prestando atenção para saber se o grito do mexicano havia sido escutado. Mas não havia nenhum som além de uma musica abafada que vinha do fim do corredor. Ele viu que aporta marcada com o X estava novamente fechada com o chumaço de jornal. Ele foi até lá e olhou pelo buraco de onde deveria ter uma maçaneta.
Viu o sujeito fazendo sexo com a menina pequena. Um radio de pilha tocava uma fita cassete de rumba. David notou que o sujeito estava fazendo sexo com as zumbis.
“Drogados pervertidos de uma figa!” – Pensou. David notou que ao lado do radio de pilha, na parede, havia outro fuzil M16. O sujeito fazia sexo anal na menina, que parecia completamente alheia ao que ele fazia. Ele começou a ficar mais e mais ofegante. Chegou ao orgasmo. Tirou o pênis de dentro da jovem menina, e arrancou a camisinha.
De lá ele gritou:
-Ei Ramón… Precisamos arrumar outra garota, cara. Essas aqui já estão ficando largas demais… Não aguento mais comer a Shun Li… Ei, Ramón? … Ramón, estou falando com você, babaca! … Porra, maldita heroína!
David viu o sujeito acariciando a bunda de Alice.
-Porra, essa aqui é muito gostosa… – Ele disse esfregando o dedo em Alice. Depois ficou olhando as marcas do chicote nas costas dela. – Quem será o idiota que marcou essa potranca assim?
David voltou até o corpo de Ramón. Pegou o M16 e destravou.
Foi até a porta. O sujeito estava novamente colocando uma camisinha.
David meteu o pé na porta.
O maluco deu um berro com o susto e acabou jogando a caixa de camisinhas para o alto.
David apontou o M16 pra ele. Esmagou o gatilho com o dedo e a arma cuspiu uma saraivada de balas que atingiram o peito dele.
Abdul caiu pra trás estatelado, com vários furos no peito.
David foi até Alice. Acariciou a bunda dela. Era lisinha, redondinha.
Ele pegou o machado e cortou as cortas que a prendiam no tonel. Ajudou Alice a levantar. E ela ficou parada olhando opara a parede.
David abraçou a zumbi. Mas ela não retribuiu. Estava dura. David afastou-se. Virou para olhar as outras mulheres. Todas elas eram zumbis.
“Pra que soltar essas aí?” – Pensou.
Nisso, Alice pegou na mão dele. David Carlyle levou um susto. Por uma fração de segundo sentiu a esperança de que ela tivesse algum lapso de consciência, mas percebeu que era o reflexo simples. Alice subitamente arregalou os olhos. E virou-se para o corpo de Abdul.
David tirou-lhe a mordaça e ela saltou sobre ele metendo o dente co corpo dele. Comendo-o como um animal.
“Vocês também tem direito” – David pensou. E então soltou uma a uma as quatro mulheres. No segundos eguinte, um bolinho de mulheres peladas cobertas de sangue se locupletava na carcaça sanguinolenta do árabe.
Davdi saiu e foi até o corredor. Ele Abaixou-se de frente para o morto. Meteu os dedos nas órbitas e retirou os olhos. Colocou-os na boca e estourou para sentir o caldinho cremoso que tanto apreciava. Depois, agarrou o corpo de Ramón pelo colarinho e trouxe até a sala. Jogou o corpo para as mulheres. Elas saltaram sobre ele, gemendo e babando. Demonstravam grande prazer ao comer. Ao fundo, a rumba tocava, animando a suruba necrofágica das mortas.
David sentou-se no pedaço de espuma e ficou ali contemplando a beleza da carnificina.
Ele esperou até que já não restasse muito além de ossos. Levantou-se pegou o machado e puxou Alice pelo braço. Era difícil arrancar a zumbi de sua farra alimentar. Ele precisou dar uns bons puxões nela para conseguir que ela o seguisse.
Voltou pela rua, arrastando Alice pelo braço. Ela estava nua, toda suja de sangue. Seus cabelos estavam emplastrados de sangue parcialmente coagulado.
David sentou com ela no banquinho da praça. A menina loura continuava a balançar empurrada pela brisa.
Naquele dia, David percebeu que não poderia mais deixar Alice sozinha. Era perigoso.
David ficou ali. Parado. Pensativo. Olhava a menina loura no balanço. Parada, parecia uma pequena boneca.
Era exatamente isso, uma mera boneca, de carne.
David ficou ali na pracinha ao lado do corpo ensanguentado de Alice, contemplando o tímido vai-vem da menina. Só havia o som do vento nas árvores da praça e eventualmente o gemido de algum zumbi que passava pela rua.
-David Carlyle! Eu não acredito! – David ouviu uma voz surgindo da rua.
David agarrou com força o cabo do machado e olhou para trás.
Do outro lado da rua, na porta do cinema, estava um sujeito desconhecido, parado, em silêncio. O sujeito trajava um par de óculos escuros grandes e tinha um cachecol vermelho a cobrir-lhe o rosto. Usava uma jaqueta de couro preta larga e calças escuras de couro sintético e coturnos. David se levantou e olhou para ele.
-Puta que pariu, fudeu! – Ele gemeu ao perceber que David estava coberto de sangue seco, e saiu correndo, desesperado. David correu atrás dele.
O sujeito entrou no cinema, e esgueirou-se entre os bancos. Estava tudo escuro. David entrou atrás e ficou parado no meio da fila de acesso às poltronas na esperança de ver alguma coisa. Mas estava tudo silencioso dentro do cinema. Cadáveres espalhados pelo chão exalavam um cheiro de decomposição muito forte naquele local.
David ouviu um barulho ecoar no interior do cinema. Reconheceu prontamente o som de uma porta batendo.
“Ele vai sair pela porta dos fundos!” – Pensou.
David saiu pela frente do cinema e correu pelo beco lateral, na esperança de interceptar o sujeito na estreita rua de trás.
Quando David virou a esquina, deu de cara com o estranho, saltando o muro do cinema.
O homem caiu bem na frente de David. E apavorado, escorregou numa poça de lama, caindo sentado no chão.
-Calma… Calma… Quietinho… Shhhhh! – Ele fazia. David se aproximou devagar, com o machado na mão.
David olhou no chão e viu um caco de tijolo. Abaixou-se pegou o caco e escreveu na parede:
Eu não sou um cachorro!
O sujeito reagiu com espanto. Ergueu-se de modo curioso. Riu apressado. E começou a se limpar.
-Promete que não vai me morder? – Ele perguntou assustado.
David moveu a cabeça, negativamente.
David olhou ao redor e notou que os zumbis que zanzavam pelas proximidades não pareciam se interessar por ele.
Era magro, alto, usava uma bandana na cabeça e portava óculos escuros no melhor estilo “astro de hollywood”. Então ele vaio na direção de David, com seu andar que lembrava o de um cowboy bêbado. David não havia reconhecido no início, mas agora aquele andar, tão próprio quanto uma impressão digital, denunciava: Era o Magrelo.
David andou até ele e os dois se encontraram no centro do beco.
-David! Quanto tempo, meu chapa! – Disse Magrelo dando um soquinho peculiar no ombro de David.
David Carlyle tentou falar alguma coisa, mas só saiu um grunhido macabro e incompreensível.
-Puta que pariu, David… Quer dizer que você também virou um monte de merda que anda e come gente? – Riu Magrelo.
David meteu a mão no casaco e sacou o bloco de papel. Pegou a caneta e rabiscou:
Fui mordido. Desde então não consigo falar. Mas eu ainda penso normalmente, viu seu puto?
David estendeu a Magrelo o papel. Virou-se e caminhou para fora do beco, indo em direção à praça. Magrelo foi atrás, em silêncio. David voltou a sentar-se no banco da pracinha.
Após ler a curta missiva, Magrelo sorriu com os dentes amarelos e cariados.
- Calma, David. Calma… Mas que tesão de mulher é essa aí pelada do seu lado, companheiro? É tua? Tá pegando?
Novamente, David escreveu:
Tira o olho e nem pense em por a sua mão suja nela. Essa é Alice. A mulher que eu amei. Ela ficou assim por minha causa.
-Hummmm. Porra, mas ela é bem gostosa mesmo, cara. Quer dizer que você conseguiu esse material aí antes mesmo dela virar defunta? Parabéns, brother. É melhor que aquela gostosa tatuada lá do Mister Big, que a gente sonhava em comer, lembra? Só que ela precisa de um banho, cara. Tá fedendo a defunto. E essa sangueira toda no corpo dela?
David voltou a escrever.
Ela comeu o cara que queria comer ela. Mas vamos deixar de conversa fiada, Magrelo. Como você consegue falar e eu não?
Enquanto David escrevia, Magrelo empurrou com a bota a menina loura do balanço. Ela foi lá na frente e voltou, sem reação alguma.
David estendeu o papel e Magrelo leu.
-Cara, sua caligrafia está uma bosta hein? Quando a gente fazia letra de musica era bem melhor… Quer dizer, no tempo em que você ainda estava vivo, né? – Disse ele, soltando uma sonora gargalhada no final.
David apenas ficou olhando para Magrelo com os olhos vazios de sempre.
-Ok… Ok. Cara, a resposta pra sua pergunta é: Eu não sei. Não sei. Não sei, não sei. Tipo, eu tô vivo, meu. Eu não sou zumbi, mas por alguma razão bizarra, eu nem virei zumbi… E eles não conseguem me ver! Por isso que quando você me viu eu me desesperei, cara.
David pegou o papel novamente.
Como assim não conseguem te ver? Eu consigo ver perfeitamente.
-Cara… Minha esperança é que isso também tivesse acontecido com você, cara. Sei lá que porra foi essa, mas quando tudo ficou desse jeito, as pessoas passaram a comer gente viva, só que nenhuma dessas… Coisas, nada pessoal, ok? …Me via nem corria atrás de mim. Isso é estranho, mas tipo, eu passo perto deles e eles não estão nem aí. Eu já fiz de tudo, cara, passei banda neles, dei paulada neles, tiro, tudo. Eles até me escutam, mas chegam perto e não fazem nada. Eu acho que sou imune, David. Mas se você consegue me ver, é porque tem algo errado com você, meu chapa. Aliás, que eu saiba, eles não usam armas e nem escrevem. Como que você ficou assim, meu? E ela? Você mordeu a moça?
Um deles me mordeu. Eu fiquei sem manifestar o sintoma por um tempo, e quando vi, já não conseguia mais falar. Ela tratou de mim, cuidou e me ajudou muito. Eu achava que a doença não podia se espalhar, porque ela tinha me beijado muitas vezes. E não virava zumbi. Mas então, um dia fizemos sexo e ela amanheceu assim. Mas o que você tem feito?
-Porra, que barra, cara. Eu sinto muito mesmo. Eu tenho andado por aí, entrando em lojas e pegando as coisas que me interessam. O mundo surtou bonito, David. As pessoas que sobraram estão todas piradas. Os maiores riscos que passei foram com gente viva. Desde então, tenho frequentado as cidades e ando por aí, em busca de coisas para passar o tempo. No início, como eles não conseguiam me ver, eu me divertia com eles. Matei tanto zumbi que enjoei. Hoje eu vivo como se estivesse num videogame sem final. Tudo é meio sem graça… Já pensei em suicídio diversas vezes… Mas então me liguei que se isso aconteceu comigo, só comigo, é porque tem alguma razão, cara.
Pra piorar, as drogas não fazem mais efeito em mim. Nada. A heroína é igual água. Eu não sei o que aconteceu. Mas acredite ou não, estou mais careta hoje do que quando eu nasci. Tem uns dois dias que eu resolvi que ia dar um relax num lugar legal… Uma ilha ou coisa do tipo. Então estou dando um rolé por aqui pra achar uma moto legal e pegar a rodovia vinte para Hilton Head Island.
A droga parou de fazer efeito em mim também.
Escreveu David.
Magrelo leu aquilo, embolou o papel numa pequena bolinha e jogou na cabeça da menina no balanço.
-Cara eu acho que foram aquelas injeções que a gente tomava, meu… Lembra? Aquele troço era muito estranho. Dava umas reações doidas, febre, vômitos…
Eu também acho. Boa sorte.
- Ei David. Não acredito que você vai preferir ficar aqui parado do lado dessa mulher pelada vendo essa…. Coisa pra lá e pra cá nesta porcaria de balanço. Bora comigo, meu!
David sacou outra vez o bloquinho de papel e tornou a escrever.
Antes só que mal acompanhado. Seja bem ido.
Magrelo leu aquilo e começou a rir.
-Ah, David, David. Ainda não me perdoou por aquela babaquice, né? Foi mal, cara. Sei que passei dos limites, mas qual é? Todo mundo tem direito a perdão. Até um boçal como eu.- Ele disse.
David não esboçou nenhuma reação, e então Magrelo levantou-se do banco.
Bem, David. Se é assim, vou embora então. Um abraço, cara. Foi bom te reencontrar. – Ele disse, estendendo a mão para David.
David hesitou mas apertou a mão do Magrelo.
-Tchau David. A gente se vê… Ou não! – Ele disse.
David emitiu um grunhido baixo. Limitou-se a acenar um discreto sinal de adeus para Magrelo.
O sujeito ajeitou o cachecol vermelho e a jaqueta de couro preta. Recolocou os óculos escuros saiu andando com o passo de bucaneiro bêbado. David Carlyle acompanhou o amigo com o olhar até ele dobrar uma esquina e sumir no final da rua.
Agora só lhe restava o vento gelado do fim da tarde que agitava a copa das árvores, a menina loura do balanço e Alice, a zumbi voluptuosamente nua, coberta de sangue.
…
Quando começou a anoitecer, a dor de cabeça e a tremedeira sinalizaram a David que se aproximava a hora de comer. Ele levantou-se do banco da pracinha e agarrando Alice e a menina loura pela mão, foram para o prédio. David notou que havia alguma coisa errada quando chegaram ao prédio e ele estava tomado por uma multidão de mortos que se acotovelavam em sanha frenética na tentativa de subir as escadas.
“Ah, não…” – Pensou David quando viu aquilo.
Ele agarrou a moça e a menina e caminhou apressado pela calçada. Viu que eram tantos os mortos tentando subir as escadas que tornava impossível a entrada pelo caminho principal.
David então pegou a rua paralela e andou por ela até achar uma van esmagada num poste. David abriu a porta traseira da van e jogou Alice e a menina lá dentro. Depois usando um pedaço de pau que estava no chão, ele travou a porta da van.
“Elas ficarão seguras aqui” – Pensou.
David verificou se as outras portas do veículo abriam, mas estava trancado.
David correu para o prédio, e vendo que seria impossível entrar pela passagem tradicional, saltou a barreira da rua estreita, e correu por ela até chegar no beco que levava à saída de emergência. Ele precisou empurrar alguns zumbis que se agrupavam por ali, de modo a entrar sozinho no pequeno depósito de material de limpeza.
Com o machado ele empurrou a tampa de acesso ao forro e a mangueira de incêndio caiu. Ele usou a mangueira para escalar a parede e alcançar as escadas chumbadas na parede.
David subiu pelas escadas até chegar ao quinto andar. Na passagem da porta corta-fogo ele já podia ouvir a multidão de mortos tropeçando e colidindo nas escadas e portas do prédio.
David saiu para o corredor do quinto andar e viu zumbis por todos os lados. Ele correu para as escadas e à medida em que subia, mais e mais mortos ia encontrando.
“Tem alguma coisa errada acontecendo aqui.” – Pensou.
Quando David finalmente chegou no último andar, viu bolos de mortos andando de um lado para o outro.
“Parecem peixes num aquário.”
David correu para o heliporto e notou que a “casa” de Paul havia sido invadida. Os mortos haviam descoberto a geladeira e comeram toda a carne.
O lugar estava uma enorme bagunça, com as coisas reviradas. Fios espalhados para todos os lados, a Tv estava emborcada no chão, e as geladeiras tombadas estavam sujas de restos de sangue, carne e lama. David ficou irado.
“Carniceiros malditos!”
Ele trancou a porta de acesso ao heliporto. Viu alguns zumbis andando por ali. David correu e começou a jogar um a um do alto do prédio. Escutou os ecos dos corpos espatifando contra o asfalto muitos metros abaixo.
Quando finalmente ficou sozinho, David contemplou a necessidade de sair em busca de comida novamente.
Foi aí que ele começou a escutar um curioso chiado baixo, que era entremeado com um assobio fino. David estranhou aquilo. Pensou que o som viesse da televisão destruída no frenesi alimentar dos mortos, mas percebeu que o som vinha de trás de uma caixa. Ele puxou a caixa e encontrou ali o radio de ondas curtas. Estava ligado.
David pegou o radio e começou a mexer no dial. O radio gemeu em frequências de chiados diferentes até que subitamente, uma fraca voz humana chamou sua atenção. Era uma transmissão real, porém, muito cheia de chiados e interferências. David não entendeu absolutamente nada do que ela dizia. O zumbi ficou escutando. Tornou a mexer no dial e o marcador de sintonia passou de frequência em frequência, mas todas elas estavam em branco. Então, ele retornou o dial para a frequência em que havia escutado o sinal. Mas ainda havia muito ruído.
Ele percebeu que havia dois fios saindo do aparelho. Um deles, de cor amarela, estava soldado na antena do aparelho. O outro, azul, entrava por um orifício cortado na lateral do aparelho.
David sabia que certamente aquela era uma transmissão de fora dos Estados Unidos, porque a transmissão de ondas curtas viaja pela ionosfera em saltos. E do alto do predio mais alto da cidade, ele tinha uma melhor recepção do sinal. David notou que o fio do radio estava enrolado em um enorme novelo. Aquilo só poderia indicar uma coisa.
Ele agarrou o radio e correu com ele, para as escadas. Levou o radio até o platô do heliporto, no ponto mais alto do edifício. A transmissão melhorou um pouco, mas ainda chiava muito. David olhou ao redor em busca de alguma pista. Foi quando seus olhos viram dois fios nas cores dos que saíam do radio pendendo da comprida haste do pára raios do alto do prédio.
“Só pode ser isso!” – Ele pensou. David correu até o canto do heliporto, onde havia um tipo de quadro de luz. Atrás dele, havia uma escada metálica que levava até o pára-raios.
Ali David encontrou os fios compridos.
“Então era assim que ele obtinha informações.” – Pensou enquanto emendava os fios.
Após alguns minutos de trabalho, o sinal ficou bem mais nítido e David Carlyle ouviu a transmissão. Inicialmente parecia uma pessoa falando alguma coisa, mas em uma língua desconhecida. David sentou-se no chão perto do radio e ficou escutando.
Após um tempo, a língua que parecia francês mudou para japonês. E depois, para espanhol, e finalmente falou em inglês:
… Esta é uma transmissão automática na frequência 6.127 kHz…
(pausa)
Atenção, se você está ouvindo esta transmissão, saiba que ainda existe esperança. Somos um grupo de pesquisadores no Brasil. Estamos na cidade do Rio de Janeiro. No centro de pesquisas da Fundação Oswaldo Cruz. Estamos trabalhando na cura. Estamos com as pesquisas adiantadas e já obtivemos um sucesso relativo na cura dos contaminados. Estamos isolando uma área da cidade para tratar dos doentes. Gupos de sobreviventes são bem vindos. Temos um posto de triagem instalado na ilha de Paquetá para tratar dos doentes. Estamos alocando grupos de sobreviventes nas ilhas do litoral de Angra dos Reis. Se você pertence a um grupo de sobreviventes, dirija-se para o Brasil, costa do Rio de Janeiro. A triagem será feita em Paquetá e as famílias serão encaminhadas para as ilhas.
As ilhas estão livres da contaminação! Repetindo: As ilhas estão livres da contaminação!
Mas é proibido dirigir-se diretamente para as ilhas. Estamos recebendo refugiados de varias partes do mundo. Embarcações que não se identificarem na triagem serão sumariamente afundadas. As coordenadas para a triagem são: 22°45’30?S 43°06’33?W
Temos comida, água alimentos e remédios.
Este aviso será repetido em 64 línguas.
(pausa)
… Si tratta di una trasmissione automatica sulla frequenza di 6.127 kHz…
David anotou correndo as coordenadas no bloco. Enquanto a mensagem se repetia em italiano, David tentava conter a excitação. Havia uma cura! Aquela notícia era um pequeno flash de esperança em meio a escuridão do caos. Mas o Brasil parecia uma floresta distante e perigosa. Como chegar lá?
David desconectou o radio e guardou-o em um lugar abrigado da chuva. Ele sabia que precisaria obter alguma comida para iniciar a jornada.
Pegou o machado e desceu pelas escadas do prédio.
Ganhou as ruas. Estava escuro e ele precisava obter comida. A dor de cabeça começava a latejar. David notou que estava precisando comer carne em intervalos cada vez menores. Temeu que aquilo fosse um sinal de que a doença estava gradualmente avançando em seu organismo.
David andou pela cidade em busca de alimento. Olhava os mortos vagando em suas permanentes e contínuas migrações na eterna caça da carne dos vivos. Agora que ele sabia que havia uma cura, a ideia de comer um ser humano lhe parecia mais repugnante. Mas a dor nos músculos, articulações, e a absurda cefaléia lhe impeliam a buscar a carne para fazer aquela dor maldita parar.
David andou sem rumo pelas ruas escuras da cidade. Sabia que Alice ainda não estava com os sintomas dele, pois ela havia se empanturrado da carne do tarado mexicano.
Enquanto andava, David escutou o som dos gritos desesperados da horda. Ele sabia o que aquilo significava: Comida.
David correu na direção dos gritos e viu passar perto de um viaduto uma multidão de zumbis que avançava por um terreno baldio em direção a um velho estacionamento.
Forçando a visão na escuridão da cidade, David viu um jovem saltar um alambrado em direção ao estacionamento. A massa insana de zumbis vinha correndo atrás dele.
David percebeu que havia uma entrada para o pátio fechada com uma não muito grossa corrente de ferro e um cadeado.
Foram necessárias duas machadadas para partir a corrente. David esgueirou-se pelos carros para se aproximar do garoto. Quando chegou perto o suficiente, viu a multidão de corpos forçando o alambrado. David notou que estava a ponto de quase perder o jantar quando viu um zumbi se aproximar do menino, acuado entre dois carros.
Mas bastou uma machadada bem colocada co cocuruto do morto para tirar o zumbi do colar dourado da reta. David estava preparado para dar uma segunda machadada no menino, mas para seu espanto, ele correu assustado e o abraçou. Por um breve instante que seria difícil de mensurar, David pensou em não matar o moleque. Mas a dor era muito forte e estava corroendo-lhe as entranhas. Além disso, seroa impossível escapar da horda com o menino à tira-colo. O que aconteceu a seguir envergonharia para sempre David Carlyle, caso alguém tivesse testemunhado a cena.
David rapidamente agarrou o moleque pelo braço e meteu uma bela dentada no pescoço dele.
Os dentes de David Carlyle afundaram na carne macia e quente e o sangue jorrou em profusão.
O moleque ficou se debatendo, na tentativa vã de se libertar do abraço mortal de David Carlyle, mas rapidamente perdeu as forças e tombou sem vida nos pés dele. David notou que o alambrado estava prestes a ceder e mordeu o mais que ele pôde aquela carne quente. Ele engolia grandes pedaços e com força repuxava os músculos e artérias do pescoço do garoto. Quando chegou ao coração do menino, ele ainda batia e esguichava sangue para todo lado.
David arrancou grandes nacos de carne e escondeu os pedaços no bolso. PLanejava levar para Alice e para a menina do balanço.
“Preciso arrumar um nome para ela”. – Ele pensou.
Nisso, o alambrado caiu e a horda pisoteou os da frente. David largou a carcaça mais que depressa e correu para o canto do estacionamento, ocultando-se discretamente na escuridão. Em meio a sombra, ele viu o grupo saltar sobre o que ainda restava do garoto.
Com o estômago cheio, e sem a dor a esmagar-lhe as juntas, David partiu para o centro. Precisava correr, pois assim que os mortos comessem toda a carne do menino iriam sentir o cheiro do sangue fresco nos bolsos de David e viriam atrás dele como cães.
David correu pelas ruas escuras até passar em frente a um supermercado. Ele sabia que à aquela altura, os supermercados eram locais perigosos. Quando o apocalipse tomou conta das cidades as primeiras coisas que as pessoas sadias fizeram foi iniciar uma violenta onda de saques e ataques a lojas e mercados. Incendiavam casas, roubaram carros. A confusão do pânico nas cidades provocou um êxodo na população que buscava fugir das zonas de conflito. Isso levou mais gente às ruas e facilitou o trabalho dos mortos. Com muita oferta de alimento, os zumbis eram sujeitos dos seus instintos primitivos, e apenas mordiam as pessoas, não focalizando o ataque em alvos. No início, as pessoas mordidas isolavam-se com as sadias em pequenos abrigos e em poucas horas após a mordida, já manifestavam os primeiros sintomas.
Enquanto havia muita comida, os zumbis comportavam-se como os dragões de Komodo. Eles mordiam as pessoas e passavam a segui-las, farejando o rastro de sangue. Em menos de um dia, o rastro os levavam invariavelmente à carcaça. Se o zumbi demorasse a achar o corpo, ele encontraria outro zumbi. Mas isso era algo raro, na medida em que no início, as pessoas não tinham coragem de se desfazer de seus entes queridos contaminados e apenas os isolavam em quartos, veículos e coisas do tipo. Como os zumbis eram lentos, isso provocou uma explosão demográfica de defuntos cambaleantes.
O que os humanos ainda não sabiam é que ao detectar a carne, os zumbis começavam a urrar de um modo específico que atraía outros zumbis. E sempre que eram mantidos confinados, eles logo atraiam as hordas. Foi assim que as grandes cidades se viram abarrotadas de mortos.
David entrou no mercado em busca de sacos plásticos. Os sacos eram um eficiente método para ocultar o cheiro da carne fresca.
No mercado, ele conseguiu arranjar sacos plasticos para colocar a carne. Derramou detergente nos bolsos na esperança de ocultar o cheiro do sangue do garoto e dificultar os rastros.
David correu pela cidade, mas percebeu que sua tentativa de dissimular o cheiro do sangue tinha sido em vão. Ao olhar para trás, ele viu uma multidão de mortos vindo em seu encalço.
“Merda!”
David Carlyle correu o quanto pôde, mas à medida em que corria, mais e mais mortos se incorporavam ao grupo, em uma maratona maníaca atrás dele. Ele sabia que o sangue do garoto havia encharcado seu sobretudo e ao correr David espalhava o delicioso aroma da morte pela cidade. Os mortos vinham pra cima dele como moscas.
Os zumbis estavam chegando perigosamente perto. David pensou que talvez não conseguiria escapar.
Subitamente, uma moto de corrida surgiu na frente dele.
-Pula David! – Gritou Magrelo.
David saltou na garupa da moto. Era uma Honda CBR 1000 RR preta, de mil cilindradas. Magrelo acelerou a moto e os zumbis focaram para trás.
Enquanto a moto esguelava em alta velocidade pelas ruas repletas de detritos, Willy Magrelo gritava:
-Porra, tu é maluco, cara! Eles quase te pegaram!
David não dizia nada. Apenas agarrava-se à cintura do amigo. O vento chicoteava seu rosto.
Algum tempo depois, os dois pararam com a moto num estacionamento.
-Acho que tá tranquilo aqui. – Disse Magrelo desligando a moto. – Nenhum sinal de zumbi além de você, meu chapa.
David desceu da moto. Meteu a mão no bolso e tirou a caderneta, toda suja de sangue e detergente.
-Puta, que nojo, cara! Não vai dizer que é sangue de gente? É?
Iluminando com o farol da moto, David escreveu no papel:
É! Por isso que me perseguiam. Preciso levar comida para as meninas.
Depois estendeu para Magrelo. Ele leu e ficou pensativo.
- Caralho, cara. Você está em apuros.
David assentiu com a cabeça e pegou o bloco de volta, tornando a escrever.
Descobriram a cura. Há um grupo, no Brasil. Eles estão no Rio de Janeiro.
-Que? Cê tá de sacanagem!
David moveu a cabeça negativamente.
-É verdade mesmo, David?- Magrelo estava incrédulo.
David assentiu com a cabeça.
-Porra, cara. Então temos que ir pro Brasil, mané!
David tornou a escrever:
Eles estão colocando as pessoas curadas em ilhas. Vão repovoar o planeta.
-Precisamos entrar nessa, cara. Brasil? Tem certeza?
David assentiu com a cabeça.
-Porra eu pensei que lá só tinha macaco e bandido. Bora, cara! Vamos que eu quero chegar a tempo de pegar o carnaval! – Disse Magrelo, fingindo sacudir maracas no ar. David voltou a escrever:
Temos que levar as meninas.
-Quê? Ah, cê tá maluco, David. Porra, cara! Levar como? A mulher é gata e tudo mais, só que ela é um zumbi, mermão. Se liga! Ela é um defunto, meu!
David estava resolvido. Pegou o bloco da mão de Magrelo e riscou uma linha abaixo do que já havia escrito:
Temos que levar as meninas.
-Tá. Ok, ok. Não precisa brigar. Vamos pensar, David. Pensa desgramado! Pensa! Como vamos fazer pra levar elas duas pro Brasil com a gente? – Magrão perguntou, alisando o tanque de combustível da moto.
David deu de ombros, indicando que não sabia.
-Como que você soube desse lance no Rio?
Eu ouvi no radio de ondas curtas.
-Radio? Que radio? Não tem luz, maluco. Como que você ouviu radio sem luz?
Um cara adaptou um esquema de painel solar. Fez um radio alimentado com baterias.
-Ah. Tô ligado. Ondas curtas… Aquela parada que ninguém nunca escuta, né?
O radio está repetindo a mensagem. Disseram que tem pessoas indo para a cidade, saindo do mundo todo.
-Avião?
Acho que não. Navio. Os sistemas de vôo e suporte aéreo não devem estar funcionando.
-Hummm. Pode crer, brother. É navio mesmo. Bom, eu acho que o mais provável é que as pessoas acabem pegando esta transmissão e cedo ou tarde, migrem para as regiões costeiras, para pegar os navios e ir pro Brasil. Tudo que temos que fazer é achar um porto, entrar num navio desses e dar no pé com eles.
Só que eu sou zumbi. E a Alice também.
- Isso é apenas… Um detalhe. Vem, vamos nessa. Onde que está a tal Alice?
David pegou o papel e escreveu.
Estão trancadas numa van, perto do prédio onde está o radio, mas a área está lotada de zumbis.
-Sobe aí, rapá! – Disse Magrelo. David subiu na garupa novamente e ele acelerou a moto para fora do estacionamento.
…
Minutos depois os dois passavam perto do predio.
David apontou o dedo e Magrelo viu a van engastalhada no poste. O lugar estava repleto de zumbis que correram atrás da moto ao sentir o cheiro das roupas de David.
-Cara não vai dar pra parar aqui. Vamos mais à frente. – Gritou Magrelo, acelerando a moto.
Eles avançaram cerca de duzentos metros. E Magrelo finalmente parou a moto.
-David, eles estão sentindo o cheiro da carne aí na tua roupa, cara. Vamos fazer o seguinte. Em vez de você ir lá, eu vou lá. Tu fica aqui perto da moto e eu trago as meninas. Teremos que arrumar outro veículo. Essa belezinha aqui não vai ser útil para levar uma cabeçada com a gente. Eu tenho uma coisa para dar pra aqueles caras mastigarem! – Disse, tirando uma granada do bolso da jaqueta.
David concordou em silencio. Enfiou a mão no bolso e em vez de tirar o bloco pegou o saco com as carnes do menino.
-Eca! – Magrelo fez uma cara de nojo.
David estendeu o saco para o amigo.
-Deus queira que eles não sintam o cheiro dessa porra! – Ele disse. Em seguida, viu uma poça de água imunda na sarjeta. Passou o saco com a carne na água pútrida.- Tomara que isso ajude.
Magrelo correu na direção dos zumbis.
Enquanto corria ele pensava no risco que estava correndo. E isso o animava. Magrelo estava sentindo uma adrenalina correndo em suas veias como há muito não sentia. A vida de um invisível aos mortos era sem graça. O medo da morte dava a pitada de emoção na medida exata em que ele vinha buscando.
Ao passar pelos primeiros zumbis, Magrelo viu que estava realmente invisível aos mortos.
“Eu acho que tenho cheiro de defunto” – Pensou.
Ao chegar na van batida, Magrelo viu a porta presa com a madeira.
Ele precisou chutar com força para tirar a madeira do lugar e liberar a porta traseira da van.
Ali dentro, encolhidas e com o olhar perdido, estavam as duas. Alice estava agachada de cócoras, segurando na mão da menina que tremia miseravelmente, e olhava pra ela sem expressão.
Magrelo entrou na van e fechou a porta.
-Olha, meninas. Tenho um presente, mas vocês terão que ser rápidas! – Ele disse, rasgando o saco.
As duas pareciam congeladas e subitamente saltaram sobre o saco, comendo com vontade. A criancinha est5ava muito mais afoita que a mulher.
-Cruzes! Vão se engasgar! Calma! – Magrelo pedia assustado.
Nisso, começaram as pancadas na van.
“Eles sentiram o cheiro” – Pensou.
As duas comiam os últimos pedaços de carne com avidez. A van começava a ser sacudida. Do lado de dentro, Magrelo se esforçava para segurar a porta, na tentativa desesperada de impedir que os mortos invadissem o veículo.
“Porra por que o idiota do David não deixou para alimentar os bichinhos dele depois?” – Magrelo Pensava. -”Não vou conseguir segurar muito tempo!”
- Comam logo esta porra! – Gritou.
A van balançava de um lado para o outro.
-Desculpa o mau jeito aí! – Magrelo empurrou a menina com o pé e deu um murro na cara de Alice, que caiu para trás. Ele agarrou o saco com os últimos pedaços de carne e sangue. Lançou na direção do banco do motorista. Ele viu o saco cair sob o painel, perto do pedal. Um segundo depois, a porta se abriu numa paulada. Um monte de mortos pulou dentro da van.
Magrelo agarrou a mão de Alice e puxou as duas para fora, tentando vencer a correnteza de zumbis. A multidão de mortos vivos se acotovelava dentro da van tentando chegar no banco do motorista.
-Bora porra! – Gritou Magrelo, puxando Alice pelo braço. Ela por sua vez, estava de mãos dadas com a menina loirinha, e uma puxava a outra. As duas queriam também entrar pela van adentro para comer os restos do saco plastico, mas Magrelo se esforçou em arrancá-las dali. Meteu a mão no bolso e tirou a granada de fragmentação. Com os dentes arrancou o pino de segurança e lançou pra dentro da Van.
-Vem, porra! Ung! – Magrelo gemia, usando toda força que tinha para arrastar as duas.
Quando os três se afastaram o suficiente, David veio correndo, sem o casacão.
A van explodiu, lançando pedaços de zumbi para todos os lados.
Todos caíram no chão.
David agarrou na mão de Alice e ficou na duvida se estava vendo coisas quando notou um frágil sorriso brotar no rosto da mulher nua.
-Vem, vamos sair daqui! – Gritou Magrelo, apontando na direção da rua de cima.
Enquanto o carro ardia em chamas e corpos cambaleavam pegando fogo, os quatro correram em direção a outra rua. Ali havia uma concessionária de veículos de luxo.
-Fica aí!- Gritou Magrelo apontando o chão. David segurou as duas, seguindo as orientações do amigo.
Minutos depois surgiu um carro esporte branco, conversível.
-Bora! – Gritou Magrelo.
David empurrou as meninas para o banco de trás. Saltou no panco do carona e viu pelo retrovisor a cidade de Atlanta ficando cada vez mais para trás.
…
Magrelo dirigia como um louco. O carro, uma Mazerati gran Cabrio branca, fazia barulho como um avião.
-Uhuuuuu! Sempre quis pilotar uma belezinha dessas, mermão! – Gritava satisfeito. David olhou para o céu e viu as estrelas. O vento da noite chicoteou seu rosto. Ele olhou para trás e viu Alice, ainda de mão dada com a menina.
“Espero que ainda haja esperança pra elas.”
-Segure-se, David! Vai ser um longo caminho até o porto de Savannah!
O carro de Willy Magrelo sumiu na imensidão da estrada, deixando para trás a cidade dos mortos. Os grilos, morcegos e animais da noite marcaram sua presença sombria enquanto corpos abjetos cambaleavam na escuridão.
Fim da primeira temporada
AUTOR: Philipe, Ele tem 35 anos, é casado, blogueiro, designer, empresario, psicologo, entusiasta da tecnologia, mistérios, ufologia, cultura pop, nerdices e curiosidades em geral.
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