Clarck olhou de soslaio para o homem de terno.
-Vou deixar vocês a sós. Vocês dois tem muito a conversar. Com licença. -Disse ele, do jeito sempre formal, batendo a porta e trancando.
- Que porra é essa? – Disse David saltando pra cima de Clarck e agarrando-o pela gola do jaleco.
-Calma, calma. Fica frio! – Gemeu Clarck. Mas David já começava a estrangulá-lo.
-Como assim fica frio? Vocês mataram os outros!
-Ung, espera, solta meu pescoço. Ai… Pare.. Não consigo… Respirar.
David soltou Clarck, que bateu na parede e se apoiou na cama, arfante.
Clarck estava mudo, tentando recuperar o fôlego.
-Se tivesse feito… Isso na frente… dele… você teria… morrido. – Disse Clarck.
-Grande merda. Pelo que eu estou vendo, qualquer coisa que eu faça, o resultado será sempre este.
-Não… Aqui é diferente. As pessoas lá fora estão morrendo por motivos fúteis.
-Motivos fúteis?
-Sim, David. Comida, abrigo, remédios, essas coisas. O mundo lá fora regrediu.
-Isso è verdade. Mas quem são esses caras?
- David, David… – Disse Clarck, colocando as mãos para trás. Ele andou pelo quarto como se procurasse cuidadosamente as palavras. – David quando o caos se instalou, as pessoas entraram em pânico. Isso já aconteceu outras vezes na história deste planeta, meu amigo.
-O que?
-Isso mesmo que eu disse. Esta não foi a primeira vez. David, presta atenção, pois eu não terei saco para explicar duas vezes. Há muitos e muitos anos atrás, muito antes do Homem andar pela Terra, o planeta foi povoado pelos dinossauros.
-Tô ligado. Aí veio um meteoro e…
-David, o meteoro é só uma das milhares de hipóteses para a extinção dos dinossauros. Existem outras, mais… plausíveis, eu diria…
-Tá, mas o que a gente tem a ver com isso?
-A rigor, nada. Mas se você parar para pensar no que deve ter sido a luta pela sobrevivência num planeta em que as coisas começam a mudar dramaticamente, verá que sobreviveram os que eram mais adaptáveis. O velho mundo dos dinossauros se tornou gradualmente um mundo que permitiu a super especialização. Então havia dinossauros com bocas grandes, dentes grandes e braços pequenos. Por que? Porque eles não precisavam dos braços… Mas quando tudo entra em colapso, aquela configuração que foi se moldando ao longo de anos, vai para o ralo.
David, você sabia que existe uma mariposa em Madagascar que tem uma tromba de 25cm?
-Não…
-Ela tem uma tromba de 25 cm porque existe na ilha uma flor cujo néctar se localiza a exatos 25cm em seu interior. Quem evoluiu primeiro?
-Não sei.
-Exato. Ninguém sabe, David. As coisas evoluem sem que haja um controle claro para a Ciência. Por que você está aqui? Porque eu estou aqui? Será apenas o acaso? Ou uma obra cuidadosamente arquitetada por uma inteligência superior?
-Mas… Eu ainda não entendo onde você quer chegar.
-David, presta atenção, está claro, meu rapaz. As pessoas adaptáveis são as que vão sobrar. Quando você me conheceu, agindo como um burro de carga, certamente pensou que eu era um lacaio daquele brutamontes bigodudo e careca que nunca deve ter visto uma escova de dentes na vida.
-O Sam?
-Isso mesmo. David… Eu sou o ser mais adaptável que você já viu. Eu não bato de frente, eu não fico ao alcance. Minha sobrevivência está acima de tudo… Eu faço qualquer coisa para sobreviver, meu jovem.
-Filho da puta… Você… Foi você!
-Sim, fui eu. Eu entreguei a eles o local da base, em troca de sobreviver. Obviamente que ser medico facilitou isso.
-Mas como?
-O radio do helicóptero, meu jovem. Quando minha filha morreu, não me restava mais nada a fazer senão buscar a sobrevivência.
-Mas e aquelas pessoas? Elas não tinham culpa! Elas estavam, como você falou…
-…Eu disse o que você precisava ouvir, David.
-Mas então, não era verdade?
-Sim, era. Mas apenas uma face da verdade. Eu sempre direi o que você precisar ouvir. Aquelas pessoas estavam sob o controle e os caprichos de um monstro. Um homem mal. Nicolas era um louco. As pessoas gradualmente perderam o contato com o mundo real lá fora. A sanidade hoje é algo a ser conquistada a cada dia. Mas elas não morreram em vão. Elas morreram por uma causa, para trazer de volta a aurora da humanidade a este planeta…
-Eu não sei do que você está falando. Você também pirou… Eu quero sair daqui. Me tira daqui. Me tira daqui!
-Calma David. Calma. Gritar vai piorar as coisas para o seu lado.
-Me tira daqui…
-David, esses homens, os homens de branco… Você quer ou não quer saber a verdade, David? – Indagou Clarck.
David acenou positivamente com a cabeça.
-… – Agora David estava quieto, sentado, encolhido no canto da parede. Clarck retomou o diálogo.
-Os homens de branco querem recuperar o mundo, David. Esta é a última chance da humanidade retomar o planeta. Nós vamos curar a praga… Mas é como diz o ditado, “não se faz um omelete sem quebrar alguns ovos”! O que eu vou lhe mostrar, não é algo fácil de ver. Tem que ter estômago. Então eu lhe dou duas escolhas. Você pode optar por não saber e deixar a vida seguir seu curso, arcando com as conseqüências da sua escolha. Ou pode tentar entender o “nosso” lado e então se juntar a nós em nossa causa.
David estava impassível. Assistia com perplexidade aquele homem frágil de cabelos brancos, que tinha derramado lágrimas no alto do prédio ao lembrar da filha, que demonstrava um medo e receio quase neurótico e que agora falava com extrema segurança. David finalmente compreendeu que este era o verdadeiro Clarck. Naquele dia, David avançou um passo na compreensão do mundo ao vislumbrar que só se conhece de fato as pessoas quando elas estão numa posição superior nas relações de poder. Aquilo era uma enorme lição que Clarck havia deixado pra ele. David não pretendia abrir mão desta lição.
Dessa forma, David Carlyle, acenou positivamente com a cabeça. Clarck lhe estendeu a mão, e o jovem David levantou-se.
Clarck bateu na porta. E minutos depois a chave girou na tranca e ela se abriu.
David viu que uma pessoa vestida com o traje branco de contaminação e máscara de gás segurava um fuzil. Este sujeito os acompanhava de perto, em silêncio. Ali estava um grande corredor, em curva, com portas de um único lado.
-Que lugar é este?
-Eles chamam de ponto zero.
- E o que eles fazem aqui?
-Bem, esses caras estão há algum tempo resgatando os humanos sãos. Já são poucos. A taxa de expansão da contaminação é altíssima. Se eles não fizessem isso, as pessoas iriam acabar. Ou por falta de comida, por falta de remédios, iriam se matar por loucura, ou seriam atacados pelos selvagens.
Os dois chegaram num grande átrio. O segurança ficou para trás. O lugar era enorme. Parecia um shopping. Era tudo muito limpo. Havia um permanente cheiro de hospital no ar. Em cada andar homens de macacão branco e mascaras de gás seguravam armas.
Nas proximidades de onde estavam, tinha uma ponte que atravessava o átrio e levava direto a um andar com salas com portas de vidro, onde alguns cientistas discutiam apontando telas com gráficos que se assemelhavam a moléculas.
- Está vendo essas portas? São laboratórios. – Disse Clarck apontando.
- Mas Clarck… Me diga uma coisa. Que doença é essa?
-David… Nós estamos justamente tentando entender o que se passa. Sabemos que o surto vazou de uma experiência científica militar, que vinha sendo desenvolvida em sigilo. A coisa saiu de controle, creio que não intencionalmente. Pelo que eles me contaram, inicialmente foi uma bactéria geneticamente construída, e liberada em vários países de modo proposital. Ela foi disseminada para se espalhar devagar. A bactéria, que chamaram de CIG998-T, foi sintetizada pela primeira vez em 1972 num laboratório dos Estados Unidos. Durante todas as décadas de 80,90 e 2000 essa bactéria foi liberada na água, nas estações de tratamento, nos produtos industrializados, em doces, em restaurantes… Ela foi aspergida sobre plantações e até mesmo implantada nos alimentos servidos em aviões. Várias campanhas de vacinação pelo mundo tiveram como objetivo colher informações estatísticas sobre locais ainda não atingidos pela bactéria e implantá-la nesses locais. Até nas tribos distantes da Amazônia ela foi inserida.
-Mas o que essa tal CIG não sei das quantas faz?
-Ela não faz nada. Aí está a genialidade do projeto. Ela é inerte. Esta bactéria está em mim, em você, e em todos aqui. Ela passou a fazer parte do arcabouço biológico que permite a vida humana. Seu intestino está cheio delas, seus olhos, sua boca, seu nariz, sua saliva, seus ouvidos, sua pele é lar para milhões de pequenos seres, alguns com funções específicas, como as que regulam suas funções intestinais. As pessoas pensam em si mesmas como indivíduos únicos, mas David, nunca estamos sozinhos. Não existe um “eu” apenas um “nós”.
-Tá, mas então, nos anos 70 alguém cria uma bactéria que não faz nada? E implanta o bichinho no mundo todo. E daí? Por que?
-Aqui está a pior parte: Era uma arma de guerra. Imagine as perspectivas do embate nuclear da Guerra Fria. O que poderia ser pior que bombas atômicas? Uma doença que matasse a todos. Primeiro fizeram a bactéria. Depois trabalharam para dar um jeito de deixá-lam letal. Isso è como construir um barco dentro de uma garrafa. Se faz aos poucos, com calma. Com paciência. A bactéria tinha um gatilho, e o gatilho era um virus feito em laboratório.
O projeto deveria ter sido paralizado, desativado, mas deu merda.
Alguém liberou o virus. Não sabemos como isso aconteceu, de onde ele veio e nem por quem ele foi lançado. Tudo que temos são especulações. Também não estamos certos se o virus que está agindo agora é o mesmo que desencadeou a epidemia. Ele pode ter sofrido uma mutação. Minha hipótese é que alguém projetou o virus para usar o material genético da CIG998-T e se espalhar em grande profusão. Acho que a idéia era surgir logo depois com uma cura. Você pode imaginar o poder de uma companhia que tem um remédio que todas as pessoas do mundo necessitarão?
-Nossa…
-Mas o imponderável aconteceu, meu caro David. A coisa saiu do controle. Talvez fosse tarde demais para oferecer a cura. Talvez a doença tenha se acelerado a um ponto imprevisto, ou o virus se ligou a algum outro tipo de enfermidade, tornando-se algo novo e potencialmente mais letal, e até agora… Sem cura.
Os dois chegavam ao outro lado da ponte. Ali estava um jovem oriental.
Clarck fez as apresentações.
-David , este é o doutor Mayong.
-Olá.
-Como vai o senhor?
-Bem.
Clarck interrompeu – David, este é um dos principais pesquisadores do ponto zero. Ele vai nos detalhar os processos do virus.
-Ah….
-Sim, mas não estou sozinho. Sou membro de um time. Venha, vou explicar a vocês o que é esta coisa. Sigam-me, venham por aqui, por favor.
O jovem oriental saiu andando com passos rápidos na direção de uma porta. Ele digitou uma senha num pequeno painel de números na parede. A porta destrancou e os dois entraram.
Estavam agora numa sala.
-Sentem-se. – Disse o cientista oriental.
Clarck e David tomaram seus lugares em confortáveis poltronas de couro.
- Você falou a ele sobre o CIG998-T? – Perguntou o cientista. Clarck acenou positivamente.
-Bem, David, o que acontece é que o virus TEGEN – este é o nome que demos para ele – não faria nenhum efeito num ser humano sadio se ele não estivesse contaminado com a CIG998-T. O problema ocorre quando o virus entra em contato com a bactéria. Ao entrar em, contato, ele penetra na bactéria e altera seu código genético. Por sua vez, ele sofre a primeira das três grandes mutações de seu ciclo. A bactéria se torna uma fabrica de TEGENS-T1, agora sendo espalhados pelo corpo na forma de TEGEN-T1. Em poucos minutos, bilhões deles estão passeando pelo corpo, rumo ao cérebro.
Ao chegar no cérebro, o TEGEN-T1 vai direto para a substância negra. A substância negra é um componente essencial dos gânglios da base, um circuito bastante complexo que fica nas profundezas do cérebro, e são responsáveis pela sintonia fina, e coordenação dos movimentos. Nesta fase da contaminação, surge a febre e os primeiros espasmos musculares. Em seguida, outras duas partes importantes do cérebro são afetadas: o hipocampo e o córtex entorrinal. Ali, o TEGEN-1 vai se ligar aos axônios neuronais, bloqueando o influxo elétrico numa ação que lembra um incêndio florestal. Os primeiros centros a cair são os relativos às recordações, a linguagem e às emoções. Apenas ficam intactas as regiões responsáveis pelos órgãos sensoriais, como a visão, o tato, a audição e as que controlam os movimentos.
-Cruzes.
-E isso não é tudo! Pense na doença como uma mistura dos males de Parkinson e de Alzheimer somados numa única, devastadora e veloz dose.
Nesta fase, temos o que chamamos de “zumbi bom”. O indivíduo já não possui mais a dimensão de si mesmo, e nem do outro. Nesta fase, a pesquisa mostrou que uma terapia focada em inibidores de acetilcolinesterase conseguia aumentar a concentração de acetilcolina. Como o TEGEN-1 operava como um bloqueador do neurotransmissor, os inibidores baseados na galantamina afetavam o funcionamento dos sinais e observamos uma melhora nas funções intelectuais residuais. Com isso, os doentes voltavam a responder quem eles eram, e lembravam-se coisas dos seus últimos dias. Mas assim que a terapia de inibidores da acetilolinesterase era interrompida, o processo se mantinha em evolução e o quadro de degradação cerebral evoluía até o total desaparecimento de qualquer função intelectual mais complexa.
Após as primeiras horas, o TEGEN-1 sofre a primeira alteração estrutural e evolui para TEGEN-2. É esta forma que irá afetar especialmente o eixo adrenal-pituitário-hipotalâmico. Isso é mais ou menos como jogar um menthos numa garrafa de coca-light. O TEGEN-2 vai provocar um excesso brutal de atividade no eixo, explodindo a produção de corticotropina. Aqui eu tenho que explicar uma coisa, quando um ser humano, ou animal detecta uma ameaça séria ao seu redor, em uma fração de segundo, o hipotálamo amplifica a produção da corticotropina, que induz a pituitária a secretar o ACTH. Este hormônio é uma instrução química, que instrui a glândula adrenal, que está em cima de cada rim, a liberar o cortisol. São essas alterações que preparam o corpo para lutar ou fugir. Basicamente, este é o mecanismo natural do stress, mas multiplicado trilhões de vezes.
Então o zumbi bom dá lugar ao zumbi agitado. Mas ainda estamos num ambiente tratável. Ele fica como louco, se debate, ataca tudo e a todos em volta como se fosse um bicho selvagem, mas o principal efeito do virus não foi desencadeado até aqui. Ele só é desencadeado quando a explosão da produção de corticotropina no eixo adrenal-pituitário-hipotalâmico atinge um nível tão elevado que de alguma forma ainda desconhecida para nós, provoca uma resposta do córtex, que dispara a produção da noraepinefrina, que vai agir sobre a amígdala, desencadeando uma agressividade fora do comum.
Então o que temos agora é um zumbi fora do controle. È como se tivesse raiva num estágio avançado. É nesta fase que se dá a mais estranha das mutações do TEGEN. O TEGEN-2 ficou diferente e ele desce pela corrente sanguínea, tirando proveito da disparada da adrenalina. Agora ele está permeável e espalhado por todo o corpo. Ele vai penetrar nos neurônios, e ali irá provocar um aumento da produção de uma proteína chamada beta-sinucleína, que terá uma dobra incomum.
-Pera. Calmaí! Dobra? Beta não sei das quantas, cotico-sei-lá-o-quê… Porra, eu não tô entendendo lhufas! – Interrompeu David Carlyle.
-O senhor está entendendo pelo menos? – Perguntou o Dr. Mayong ao Clarck.
-Estou sim, por favor, continue, não ligue pra ele.
Mayong prosseguiu:
- O TEGEN-2 também vai inibir o proteassoma celular de decompor a proteína. A produção de beta-sinucleína será tamanha, que a célula deveria morrer, mas não é isso que acontece. O TEGEN-2 abre uma passagem que libera a saída da beta-sinucleína para a corrente sanguínea. Então essas proteínas irão se acumular nas áreas nervosas dos músculos. Uma vez que aderem nas células nervosas que ativam os feixes musculares, elas estimulam um influxo de sinais de dor ao cérebro. E aqui ocorre um pequeno milagre, o TEGEN-2 se divide e uma parte dele vira o TEGEN-3. O que o TEGEN-3 faz? Ele é um antídoto para o problema causado pelo TEGEN-2!
O TEGEN-3 se espalha, seguindo o fluxo das beta-sinucleínas e vai aderir nelas. Basicamente, o TEGEN-3 é um mero interruptor neuroquímico do sinal da dor. Ele vai bloquear esta emissão, substituindo o influxo elétrico, que de uma maneira que nós ainda não compreendemos direito, simulará uma descarga de dopamina.
Imagine um prazer de um orgasmo como sendo o pingo de um conta-gotas. O que o TEGEN-3 faz, é mais ou menos como abrir as Cataratas do Niágara na mente do cara. Só que dura pouco.
A parte mais curiosa é que o TEGEN 3 só é ativado quando a ubiquitina-Y entra em contato com ele. E adivinha onde que ela está? Na CIG998-T não afetada pelo TEGEN-1.
-Então é isso que explica por que o zumbi quer comer gente?
-Sim. Apenas a carne de um não-zumbi contém a uniquitina-Y capaz de conter a dor. E isso também explica porque o zumbi não come zumbi. E também a pressa deles, já que em pouco tempo, um cadáver terá as células da CIG998-T contaminadas e isso não produzirá efeito no TEGEN-3.
-Nossa. Eu tava achando sua explicação super chata, mas agora tá fazendo um certo sentido aqui na minha cabeça. Mas é muito nome maluco. Como vocês decoram isso?
-Nem eu sei. – Mayong riu do jovem David.
-Mas professor, como e por que os zumbis ficam parados? E afinal de contas, eles estão mortos ou estão vivos?
-Esta é uma pergunta difícil de responder com certeza. A rigor, estão mortos e vivos. Uma parte deles está viva, isso significa que o coração bate, os pulmões inflam, o sangue circula. Mas a mente fica obliterada para sempre. Eles regridem a um estágio primitivo, não tem pensamentos, nem memórias. Sabemos que quando o TEGEN-3 não entra em ação, acontece alguma coisa na sua temperatura corporal que cai drasticamente e o córtex pré-frontal induz um sinal que funciona como uma espécie de freio-de-mão no cérebro do zumbi.
Ele entra num estágio catatônico que pode durar horas ou mesmo dias. Neste estágio, seu ritmo cardio-respiratório aproxima-se do zero, como em pacientes acometidos de certos venenos neurotóxicos. Para você ter uma idéia, o coração da criatura chega a bater só uma vez ao dia. E ele só vai respirar uma vez a cada três dias. Como o organismo dele não reage a degradação, nos não sabemos ainda. Isso pode ter alguma relação com os efeitos do CIG998-T.
A atividade cerebral nesta fase é zero. Então, do ponto de vista médico, esta pessoa está oficialmente morta.
Não sabemos se nesta fase ele sente a dor. Também não sabemos como este efeito é desligado. Os estudos práticos mostraram que os estímulos externos provocam a liberação desse freio-de-mão. Em poucos segundos, o zumbi sai do estágio de hibernação e retorna ao frenesi. Inicialmente, nós pensamos que isso era apenas uma curiosidade, mas à medida em que estudávamos a evolução da doença, percebemos que é um mecanismo poderoso, capaz de estender a vida dessas horrendas criaturas por um longo tempo. Isso também as deixa praticamente imunes a outras doenças, gases e etc. Na natureza existem animais que desligam partes de seus cérebros para poupar energia. O Golfinho, por exemplo, consegue desligar um lado de seu cérebro de cada vez e graças a isso, ele está em permanente estado de alerta e não parece dormir nunca. Na verdade, ele dorme com um pedaço da cabeça de cada vez. Neste caso, o cérebro inteiro do zumbi se desliga e ocorre um minúsculo efeito de atividade elétrica no tronco cerebral. É dali que parte o impulso de “religar” o zumbi.
É por conta disse que somente ataques que afetem diretamente o cérebro produzem efeito imediato, pois interrompem os processos dos mecanismos neurais. O zumbi não vai parar com tiro no peito, nem corte nos braços. Isso não segura as feras.
-Muito interessante, professor. – Disse Clarck, levantando da poltrona. Ele andou pela sala e abriu a porta. Entraram dois homens com os macacões brancos da escolta. – Venha, David. Vamos mostrar as pesquisas… Tenho certeza que você vai se amarrar.
Os cinco saíram da sala de Mayong e desceram por uma escada até o nível inferior. Ali havia uma espécie de enfermaria gigantesca, onde centenas de pessoas deitadas em camas com grossas cintas de couro os continham nos leitos. Muitos gritavam, outros choravam. Algumas pessoas gemiam e muitos estavam dopados.
David se horrorizou ao ver aquela cena. Mas Clarck parecia gostar.
-Vejam aqui é a triagem, onde verificamos as condições gerais das cobaias. – Disse Clarck. Aquela palavra, “cobaia”, soou muito mal aos ouvidos de David, mas ele fingiu não se importar. Ele estava petrificado vendo o horror daquelas pessoas debilitadas, presas como animais em suas camas. Clarck agarrou-o pelo braço.
-Venha é por aqui. Rápido garoto, venha rápido que vai começar o show!
Os cinco continuaram a andar apressados pelo nível inferior do complexo. Clarck abriu uma porta e ali estava um corredor que dava em uma espécie de jaula de vidro reforçado. Ali dentro estava uma garotinha amarrada numa cama. Ela devia ter uns sete anos, talvez oito e vestia uma roupa hospitalar. A menina podia ver os três homens do outro lado do vidro, olhando pra ela. Ela olhou para David e sorriu. David acenou para ela. Nisso, a porta da jaula se abriu e ela desatou a gritar feito louca quando um zumbi saltou ali pra dentro.
A menina olhava a criatura, olhava para eles e gritava:
-Aaaaaaaahh! Socorro! Me tira daqui! Me tira daqui! Eu quero a minha mãe! Mããããe! Aaaaahhhhh!
David, Mayong e Clarck assistiam a cena horrenda do camarote.
O zumbi tinha uma grossa corrente no pescoço, que saía de um buraco na parede. Ele avançou rapido para cima da menina. Quanto mais perto o monstro chegava com sua boca escorrendo uma gosmenta bile negra, e seus olhos vermelhos injetados de sangue, mais ela gritava de pavor. Porém, a corrente limitava o movimento da criatura e ele parou a poucos centímetros da cama da menina. O zumbi tentava desesperado chegar mais e mais perto. Ele estava com os braços presos numa algema para trás do corpo. Mas a menina estava fora do alcance.
-Ele não alcançou! – Disse David com alívio.
-Ainda não… – Comentou Mayong com um sorriso nos lábios.
A cama da menina estalou e lentamente começou a subir. A boca grotesca da criatura desferia dentadas no vazio, tentando acertar aquela carne branquinha. A menina chorava, gritava e tentava se soltar, mas a criatura estava cada vez mais perto.
David não agüentou e tampou os olhos quando finalmente o monstro acertou a dentada e arrancou um enorme naco do braço da menina. O sangue espirrou longe. Assim que o zumbi mordeu, um estalo ocorreu e o motor elétrico que controlava a altura da cama começou a baixá-la. A menina gritava em estado de choque, com os olhos vidrados naquela criatura. Imediatamente, a corrente começou a ser tracionada e a criatura foi gradualmente sendo arrastada para trás pela corrente presa ao pescoço.
Em menos de um minuto, naquela sala só restava a menina na cama, com a ferida aberta ejaculando sangue e os homens de branco, do outro lado do vidro.
Uma porta lateral se abriu, e dois homens de trajes de proteção entraram na sala. Eles vinham com uma seringa. Um deles cobriu a ferida no braço da menina, que continuava a gritar até perder as forças. O outro injetou aquela coisa no pescoço da pobre criança.
-O que vai acontecer com ela?
-O que acontece com todos os que são mordidos.
-Ela vai virar um zumbi?
-Vai.
-Meu Deus! Isso é crueldade!
-Lembre-se do que eu te falei, David – Disse Clarck colocando a mão no ombro do rapaz. – Não se faz omelete sem quebrar os ovos. – Mas aquilo não conformou David Carlyle.
Tentando conter a vontade de vomitar, David perguntou:
-E agora o que acontece?
-Entre agora e mais ou menos duas horas ela vai ter a febre. Então os espasmos, o descontrole. Perderá os sentidos. Ela vai para a ala de observação, onde o medicamento que está sendo testado aqui será avaliado. Depois, se o medicamento fizer efeito, nós daremos um tiro nela e faremos uma necropsia. Se não fizer efeito, então ela será mais um pequeno zumbi para nossa coleção.
-Coleção? Você disse coleção?
-Sim, venha, por aqui. – Disse o oriental.
Eles andaram cerca de trinta metros por um corredor sem portas e ao final havia uma porta enorme, de aço que mais parecia a de um cofre. Novamente o cientista digitou uma senha no painel e a pesada porta se abriu. Ali estava uma espécie de arena, com uns trinta e seis zumbis cambaleando no meio.
Tinha uma pequena montanha de zumbis acumulados num canto, uns sobre os outros.
Alguns cientistas de avental anotavam de um camarote de vidro mais acima os comportamentos.
-O que eles estão fazendo?
-Estudos comportamentais dos grupos. Observe.
O Dr. Mayong pegou um telefone na parede.
- Olá. Aqui é o Mayong. Liberem um no coliseu pra mim, por favor. -Disse ele. Em seguida colocou o aparelho na parede novamente.
Uma luz amarela se acendeu e uma sirene tocou. David olhou assustado para o cientista.
-Que merda é essa?
-Clama, rapaz. Olha lá pra baixo…
Os zumbis ficavam olhando pra cima. Para a luz da sirene, que girava.
-Veja… Note como eles são atraídos pela luz…
-Fascinante! – Disse Clarck.
-É agora. Façam suas apostas! – Disse rindo.
Lá em baixo uma porta se abriu e dois homens de traje de proteção jogaram uma pessoa de avental lá pra dentro do coliseu dos zumbis.
-Puta merda! Aquela pessoa! – Apontou David horrorizado.
-Sim… Observe! Eu acho que ele dura dez segundos. – Disse Mayong.
-Não, não vai agüentar nem cinco! – Comentou Clarck. – David, olha bem, não está reconhecendo um “velho amigo”?
A montanha de criaturas subitamente pulou quando a porta abriu e a pessoa foi jogada pelos homens truculentos. Ele estava caído no chão, mas se levantou correndo.
David reconheceu aquele homem. Era o desgraçado barrigudo do Joe, que havia surrado ele. Agora o sujeito tinha uma expressão de horror no rosto. Ele começou a correr pela arena.
-Olha lá, veja como eles se agrupam. Olha ali, os mais fortes se movendo pelas laterais… – Mayong estava excitado.
Em poucos segundos o sujeito estava sendo seguido por uma multidão insana. Ele tropeçou e as criaturas saltaram sobre ele como se fosse rugby. Um monte de zumbis nus saltavam uns por cima dos outros e a montanha virou uma espécie de vulcão de sangue, que mais lembrava uma bola de vermes se remexendo em frenesi.
-Olha lá, David! Estão comendo o filho da puta que bateu em você. Que coincidência, né rapaz? Nunca gostei daquele puto. Mas a mulher dele era gente boa…
-… – David não conseguia falar. Apenas olhava a carnificina, com zumbis puxando as tripas com os dentes e tentando correr para os cantos para saborear. Como a carne não dava para todos, alguns zumbis brigavam como cães raivosos, tentando guardar grandes nacos de carne para si.
Clarck e Mayong debatiam sobre o modo como os zumbis cercavam suas presas. Alheio à conversa, David apenas olhava aquela cena grotesca. David observava aquilo tentando não pensar no ódio que nutria por aquele miserável. Mas por pior que ele fosse, vê-lo sendo repartido como “ração” de zumbi era algo forte demais.
E foi nesta hora que David percebeu que aquele homem era parte das pessoas da base. E até segundos atrás, ele não estava morto. Sendo assim, ao contrário do que Clarck lhe havia dito, eles não estavam todos mortos.
O pensamento de que talvez Alice estivesse em algum lugar ali, a espera de ser devorada ou transformada, atingiu em cheio seu coração. Ele precisava fazer alguma coisa.
Só restava um monte de ossos numa poça de sangue escuro no meio daquele lugar que mais parecia uma arena. Alguns zumbis andavam pelo meio do pátio, com o olhar perdido. Outros ainda mastigavam seus últimos nacos de tripas nos cantos. Alguns estavam parados.
Os zumbis haviam comido o Joe até não restar nada além de pedaços de ossos e manchas de sangue no chão.
-Como eles são rápidos, né? – Perguntou o oriental com visível satisfação.
-Diga-me, doutor Mayong, eles ficam quanto tempo a partir de agora sem conseguir comer? -Questionou Clarck, olhando para a arena.
-Como assim? Eles comem enquanto a gente mandar carne lá pra baixo! – Riu o cientista.
- Não é possível. – Disse David. Em seguida, continuou: – Tem que ter um limite. Até porque o bucho deles é limitado fisicamente.
Mayong limpou a lente dos óculos. E Explicou:
-No inicio pensamos que haveria um momento em que um zumbi perderia o desejo pela carne. Mas isso nunca aconteceu. Eles comem, comem, comem…
-E se a gente continuar metendo carne neles?
-Aí eles começam a vomitar. É uma coisa grotesca. Vomitam, e depois começam a comer novamente.
-Então o zumbi vai querer comer sempre?
-É uma necessidade básica. É parecido com a nossa necessidade de respirar. Um ser humano consegue ficar prendendo a respiração, mas como isso é um ato reflexo, e ante à menor distração, o corpo retoma a função. Com o zumbi é a mesma coisa. Ele até fica um tempo sem comer a carne, mas assim que pode, ele volta a sua “programação normal”. São máquinas de caçar e comer.
-A carne dos vivos é a razão de viver do zumbi. – Brincou Clarck.
-Eu não diria “razão de viver” no caso deles. – Riu Mayong. Em seguida bateu no ombro de David. – Venha, me acompanhe por aqui. Vou levar vocês no setor onde estão processando as vacinas.
David seguiu o oriental e Clarck pelos corredores do complexo. Eles pegaram um elevador e subiram um andar.
Mayong mostrou o andar onde as vacinas eram testadas. Havia muitas pessoas em macas, e algumas dava para ver pela cor delas, que estavam mortas há algum tempo. Umas se mexiam. Embora contidas nos leitos, dava ara ver sua agitação. Outras estavam paradas como estátuas. E tinham umas com capuz preto na cabeça. David estranhou aquilo.
-Por que aquelas pessoas ali estão com sacos pretos na cabeça?
-Percebemos que alguns zumbis são mais suscetíveis quando lhes tiramos certos estímulos, como a visão.
-Mas por que não arrancaram logo os olhos? – Perguntou Clarck.
-Por que sempre precisamos fazer comparações. Então é necessário vendá-las e fazer testes, que são repetidos depois, sem as vendas.
-Mas em que estágio da pesquisa vocês estão? Afinal, vocês podem ou não podem curar uma pessoa atacada por um zumbi?
-Curar? – Indagou Mayong, surpreso.
-Ué? O que foi que eu disse de errado?
-Não queremos a cura. Queremos a extinção da doença. Isso é diferente de curar.
David sentiu-se a criatura mais burra da face da Terra. O tempo todo ele estava pensando que aquele investimento se dava para curar as pessoas, para trazê-las de volta ao seu estado natural. Mayong olhou para Clarck e eles riram.
-Caro David, a cura é algo que não está ao nosso alcance. Não numa perspectiva de curto prazo. Nós sabemos de outras organizações no mundo que estão trabalhando neste sentido. Existe um laboratório farmacêutico que disponibilizou um grupo na América Latina… É em São Paulo, Brasil. Sabe onde? Lá na Amazônia. Eles estão, coitados, tentando curar os índios em meio a floresta. É um erro. Um erro estúpido que nunca levará a nada. -Caçoou o cientista.
-Esses chicanos estão sempre na contra-mão! – Riu Clarck.
-Mas como você pode dizer isso, professor? – Questionou David Carlyle.
-David, perdoe minha incredulidade, mas veja… Quanto tempo o homem levou tentando combater o vírus da Aids? Quanto dinheiro investido, quantas pessoas, institutos, centros de pesquisa? E no que deu? Só fizeram remédios. Nunca conseguiram a cura.
Agora, estamos com pessoas mortas comendo gente aí fora, David. Não há tempo. Não vai haver cura. Ou nós acabamos com a doença, os zumbis e tudo mais e ou não haverá espécie humana para ser defendida. E cá entre nós, é até um serviço que a doença nos prestou. Se conseguirmos sucesso no que estamos tentando aqui, voltaremos para um mundo muito melhor, sem miséria, com espaço e alimentos para todos. Se não fosse a doença, o mundo ficaria sem reservas para alimentar as pessoas até 2043. David, veja isso como uma nova chance ao nosso planeta.
-E números, doutor? -Questionou Clarck.
-Os números não podemos dar, pois são dados secretos, mas fica só entre nós, eu estou trabalhando com a perspectiva de que teremos uma redução populacional na ordem de 98% até o ano que vem.
-Mas… Mas então, o que vocês estão fazendo é uma arma genocida?
-Se você considerar os zumbis como sendo gente, aí sim… Mas nós estamos tentando criar uma mutação do vírus, uma mutação que só mate zumbis. Preferencialmente produzindo imunidade ao TEGEN nas pessoas que forem contaminadas. Assim, mesmo as pessoas que vierem a ser atacadas por zumbis, se tiverem sido expostas à forma mutante do vírus antes, elas não virarão zumbis. Talvez tenham uma infecção grave, percam um membro… Podem até ter um quadro de septicemia, mas zumbis elas não vão virar.
David estava quieto. Pensativo. As palavras do cientista eram frias e ele não encontrava respostas para suas angústias.
-E falta muito? – Perguntou David.
O cientista parou. Olhou nos olhos de David.
-Não falta muito, David. Semana passada conseguimos uma vitória. Conseguimos que uma pessoa mordida ficasse uma semana sem manifestar os sintomas. Mas no final, o vírus venceu e a pessoa acabou virando um zumbi. Acho que estamos muito perto. Parte do segredo deste trabalho é compreender exatamente o mecanismo da “zumbificação”, vamos dizer assim. Se soubermos como ele age, podemos tentar afetar este ciclo e quebrar a cadeia.
-Mas eu não entendo… Isso não seria uma “cura”?
-Seria se a gente deixasse o contaminado vivo. Mas o melhor não é isso. Como eu te expliquei antes. Todos os contaminados devem morrer. Atualmente existem centros de recolhimento de contaminados, que os levam, a um grande incinerador. Eles são jogados na caldeira. Não sobra nada. Nem cinzas. Esses caras trabalham sem parar, recolhendo e eliminando os zumbis. Mas é um trabalho arriscado e ingrato, pois há muito mais do que eles podem lidar. Nós temos uns acordos de cooperação. Eventualmente, nós mandamos uns caminhões com iscas pra eles.
-Iscas?! – Respondeu David, já imaginando que tipo de isca era aquela.
-É, crianças, mulheres, velhos. Pessoas com dificuldades de locomoção. Nós juntamos esses mais caidinhos e mandamos num caminhão pros caras usarem para atrair as hordas. Então eles fazem umas armadilhas e orientam essas pessoas a correrem pra lá. Os mortos vão atrás e então, vai todo mundo pra fogueira. – Riu o cientista. – Hoje mesmo, a gente deve mandar um lote.
Mas venha, está ficando tarde. O meu turno de hoje vai acabar. Que tal tomarmos um wisky no centro de recreação logo mais? Daqui a umas duas horas, pode ser?
-Tudo bem. – Disse Clarck. Eles se viraram para David.
-Sem problemas. -Ele respondeu.
-Passo para pegar você nos seus aposentos às dez. Ok? -Disse Mayong.
-Aposentos? – Questionou David.
-Ué. Você não falou com ele? – Perguntou Mayong ao Clarck.
-Não me disseram nada sobre isso. – Respondeu, Clarck, dando de ombros.
-Droga. Esses caras são foda. Calma aí. – Mayong foi até uma sala. David e Clarck ficaram de fora. A sala tinha um vidro fumê, mas dava pra ver através e David notou que Mayong falou no telefone com alguém. Após alguns minutos, ele saiu da sala.
-David, você vai ficar na Ala B, que é a ala ao lado da ala do corpo permanente.
-Corpo?
-É… O pessoal que trabalha aqui.
-Ah, tá.
-Morreu de medo de ser um “corpo” de defunto, né garoto? – Riu Clarck, dando um soco de brincadeira no ombro do jovem.
Então a porta do elevador perto deles se abriu e veio o homem de terno antiquado.
-Olá senhor Hork. Como vai o senhor? – Mayong cumprimentou o homem.
-Ah, vejo que já conheceram as instalações. Que tal? Ele gostou? – Questionou o tal senhor Hork.
-E então, David. O que achou? – Clarck cutucou o braço dele.
-S…sim, achei… É… Legal. Eu vi as… quer dizer, as experiências, né? E o professor explicou pra nós o mecanismo do vírus e coisa e tal. – Disse David, meio sem empolgação.
-Ótimo! – Disse o senhor Hork. – Eles já te levaram aos seus aposentos?
-Não, na verdade estávamos justamente falando disso bem agora. – Respondeu Mayong. -Eu pedi ao responsável da hotelaria que mandasse alguém aqui pra levar o David e o doutor Clarck até a ala deles…
-Não há necessidade. Eu mesmo posso fazer isso.
-Hã? O senhor? – Mayong estava estupefato.
David estranhou a cara do cientista.
-Ora, eu projetei este complexo, posso muito bem levar os convidados até seus quartos. Algum problema pra vocês?
-Não, senhor Hork. Sem problemas. Pode levá-los. Como quiser. -Respondeu Mayong.
David estava ali parado olhando para o tal senhor Hork. Ele percebeu que aquele devia ser um homem muito importante na hierarquia do lugar.
-Venha, eu vou com vocês. – Disse Hork, dando um adeus para o cientista.
Agora David e Clarck andavam com o homem de terno antiquado pelos corredores do complexo. Ele andava em silêncio, com movimentos cadenciados. David resolveu aproveitar o percurso e fazer-lhe algumas perguntas.
-Então, senhor Hork…
-Sim?
-Quer dizer que o senhor projetou todo este complexo?
-Sim senhor. Tudo o que você viu fui eu que desenhei. E nos anos 90!
-Ué. Mas como?
-Bem, senhor David… Eu sou um empresário dono de uma holding que tinha entre os meus negócios inúmeros laboratórios médicos. Um dia, lendo um dos relatórios de uma dessas companhias, eu percebi que seria uma questão de tempo até que algo grave viesse a acontecer, entende? – Disse Hork abrindo a porta do elevador.
-Não…
-É que.. Bem… Quando você tem um leque diferenciado de empresas como eu tinha, algumas são laboratórios de aplicações militares… Outras de medicamentos… Algumas são ligadas a órgãos federais. Então você acaba lidando com muita gente. Uma pessoa te fala uma coisa, outra pessoa fala outra… Você vai a jantares, frequenta a Casa Branca. Conversa com senadores. Você consegue ver o que ninguém mais está vendo… Está entendendo o que quero dizer? – Hork parecia incomodado em tocar naquele assunto. Mas Clarck não se sentia à vontade para mandar David calar a boca na frente daquele homem poderoso. O elevador seguia seu curso.
-Informações privilegiadas, né? – Falou David de supetão.
-David! – Zangou Clarck.
-Calma, senhor Clarck. O garoto está certo. Sim, a grosso modo, é por aí, David. Quando deu a primeira crise do Ebola, no leste asiático nós vimos que seria muito possível que algo de maior vulto atingisse o planeta. E então vieram as guerras, os problemas de terrorismo. Foi uma medida sensata escolher um lugar discreto e construir no subsolo este complexo, totalmente independente da superfície. Captamos água de um profundo lençol freático, nossa energia é produzida por uma pequena usina nuclear, o ar é filtrado com alto grau de redundância… O abrigo é eficaz contra ataques terroristas, misseis, explosões, guerra nuclear, e pode abrigar até vinte mil pessoas, embora tenhamos menos de mil aqui no ponto zero.
-Por que chamam de ponto zero?
-Porque existe o ponto um, o dois… Até o seis. Um em cada país.
-Eles estão fazendo a mesma coisa nesses locais?
-Não. Cada abrigo se dedica a um tipo de trabalho. Nem todos estão ativos. Temos comunicação direta via satélite. Mas… A conversa estava ótima, só que chegamos. É por aqui. – Disse Hork abrindo a porta do quarto.
David entrou e era um quarto simples. Sem janelas. Havia apenas uma cama grande, um guarda-roupa embutido na parede e um banheiro pequeno anexo. Parecia mais a cabine de um navio.
-Que tal? Gostou? – Perguntou o senhor Hork.
-Sim… É legal. Mas e as chaves? – Questionou David.
Hork riu.
-Não tem chaves, David.
-Hã?
-As portas são trancadas remotamente. Cada pessoa deste complexo, fora eu, tem um horário pré determinado no qual ela pode sair. Após o seu turno você terá que obrigatoriamente entrar no quarto. Um fiscal irá monitorar sua presença e trancará a porta. É para sua proteção, obviamente.
-Ah… – Disse David sentando-se na cama.
-Bem, até logo. Fique aí que eu levarei o doutor Clarck para o quarto dele. O dele é o 238, lá no fim do corredor. Agora descanse. Tem roupas limpas no armário. Se quiser tomar um banho, fique à vontade.
-Até mais tarde, David – Disse Clarck, saindo com o senhor Hork.
David ficou sozinho no quarto. Não era nada mal.
Ele deitou na cama e viu como ela era macia. Mas as cenas da menina sendo atacada pelo zumbi, Joe virando um amontoado de carne disforme… Aquelas imagens não lhe saíam da cabeça.
-Chegamos ao fundo do poço. Última parada da espécie humana, quando a vida já não tem mais preço. – David falou sozinho.
Os pensamentos em Alice voltaram. Certamente que ela devia estar em algum lugar daquele complexo. Mas seria arriscado sair para procurá-la. Porém, cada minuto que passava ele sentia que ela poderia estar correndo perigo. Talvez estivesse numa cela, prestes a ser mordida por um daqueles defuntos carniceiros. Ela havia salvado a vida dele. Ele precisava fazer alguma coisa. Afinal, devia sua vida a ela.
David levantou-se e foi até o corredor. Abriu a porta e olhou lá pra fora. Mas não havia ninguém.
Ele sabia que já não poderia confiar em Clarck. Precisava encontrar Alice e sair daquele lugar o quanto antes.
David correu pelo corredor, sempre atento para as câmeras de vigilância. Andou normalmente. Ele sabia que os aventais brancos padronizavam todas as pessoas naquele formigueiro subterrâneo.
Quando o elevador chegou, David apertou para descer. Ele precisava dar uma olhada na central de triagem. Talvez ela estivesse lá.
Quando o elevador chegou no nível do setor de triagem David saiu e caminhou pelo corredor. Ele notou que vinha alguém em sua direção.
-Seja o que Deus quiser! – Murmurou para si mesmo.
A pessoa que vinha era uma mulher com cara de dondoca. Ela também estava com um macacão branco exatamente igual ao dele. Ela vinha com uma prancheta na mão. Talvez fosse uma cientista. A mulher tinha um rosto sofrido, aparentava uns cinquenta e poucos anos, talvez quase sessenta. O corpo era bem feito, o que indicava que talvez malhasse. O cabelo estava preso num coque, com palitos orientais. Estava muito maquiada, os olhos eram fortemente pintados como se ela fosse sair para uma festa. Ela veio na direção dele, mas até chegar bem perto dele, ela não estava dando a mínima.
-Com licença? – David parou perto dela.
-Hã?
-Estou meio perdido aqui. Me pediram para falar com o… Davidson, no setor de triagem.
-Davidson? – Perguntou a mulher. -Eu não conheço nenhum Davidson na triagem. – Respondeu ela, secamente.
O plano tinha ido por água abaixo. David teve medo que a mulher percebesse que era uma invasão no complexo e disparasse a gritar. Mas ela apenas disse:
-Ah, acho que eu sei quem é. Um careca?
-Isso. O pessoal chama ele de pouca-telha. -Riu David, meio sem graça, tentado parecer verossímil.
-Ele está na seção de triagem… A! – Disse, digitando algo na prancheta eletrônica.
-Ah, tá. Por ali, né?
-Não. Ali vai dar nas triagens B e D. A triagem A e C é naquela direção. Pegue o elevador do fim do corredor e suba um andar. Aí você vai em frente até o final. Vai estar escrito na placa.
-Ah… ok. Muito obrigado.
- De nada. – Disse a moça da prancheta. Ela continuou a andar. David também.
Ele estava feliz por ter obtido aquelas informações. Mas antes que pudesse comemorar, a mulher parou, se virou e o chamou.
-Ei! Você!
-Hã? – David se virou. Uma parte da mente dele já se preparava para sair correndo.
-Qual o seu nome, rapaz? E qual o seu posto? – Perguntou a mulher.
-Eu me chamo… Marco. Eu sou… Lá de cima… Da… Hotelaria. – Disse David improvisando na hora.
-Você é muito bonito, Marco. Vamos tomar um drink juntos qualquer hora dessas?
-Claro, claro… É…
-Roberta, do departamento de pesquisas C3.
-Ah, sim, claro Roberta. Na hora que quiser! – Disse sorrindo.
A mulher se foi e ele ficou ali. Com a respiração presa. Estava tão ansioso que tinha medo de desmaiar.
David disparou na direção do setor de triagem. Pegou o elevador como ela indicou e foi direto para a porta onde estava escrito: “Triagem A”. Ao entrar, David deu de cara com um homem gordo, careca, sentado numa mesa. Entre ele e o gordão tinha uma porta de vidro. À frente dele estava um grande corredor, com postas dos dois lados. Cada porta tinha uma janela pequena de vidro. Parecia o corredor da morte da prisão.
O homem apertou um botão na mesa e pelos alto-falantes na parede, a voz dele surgiu, metalizada. E o interpelou:
-Quem é você?
-Eu sou o Marco… Do setor de pesquisa. A… Roberta… Me mandou vir aqui procurar um paciente…
-A Roberta do setor de pesquisas te mandou?
-Isso.
-Porra! Isso aqui tá uma zona mesmo. Não recebi nada. Cadê o formulário?
-Ela… Ela vai mandar ainda. Só me mandou aqui antes, porque estava muito ocupada e… Precisava…
-Precisava o que? Fala rapaz!
-…Precisava se certificar de que setor que estava esta… cobaia era.
-Ah! É sempre a mesma merda! Uma bagunça do caralho. Olha, diz pra Roberta que eu não vou liberar mais entrada na triagem sem o formulário de acesso.
-Claro, pode deixar. Eu digo.
O gordão digitou alguma coisa num pequeno notebook na mesa dele e a porta de acesso se abriu.
David entrou pelo corredor, olhando de janela em janela.
Ali estavam homens, mulheres, crianças… Varias pessoas que ele nunca tinha visto antes. Mas não havia nem sinal da Alice.
Faltavam poucas celas para que ele olhasse todo o setor de triagem A, quando David finalmente viu um rosto conhecido. Era Wilson.
Wilson estava sentado, olhando para o teto. David olhou pra ele. Mas Wilson estava perdido em seus próprios pensamentos. Olhava para cima. Tinha um olho roxo, um corte na testa, parecia machucado e abatido. David olhou e anotou mentalmente o numero da cela dele : 96.
Wilson não viu David Carlyle.
Ele continuou a olhar cada uma das celas, em busca de Alice, mas ela não estava ali.
David voltou até a entrada.
-Achou? – Perguntou o gordão.
-Nada. Eu acho que ela se enganou. -Disse ele.
-Marco, como é mesmo que era a tal paciente?
-É uma morena, mais ou menos dessa altura. O cabelo é grande, ela tem uns, bem, uns… – Fez o movimento imitando os seios.
-Ah! Eu sei qual é! Ela estava lá na triagem C. Todo mundo comentou que era um desperdício aquela gostosa na triagem C, porque você sabe, né?
-Pois é, né? – Comentou David. Ele não sabia do que o gordão estava falando, mas pelo tom dele, o destino das pessoas na triagem C não era dos melhores.
-Por que será que botaram ela no C? – Perguntou David.
-Ah, Marco, nem te conto, cara. Essa deu trabalho pra danar! No início ficou todo mundo animadinho, fizemos até uma fila, pra comer o filé. Mas foi foda, cara. Eu tenho um amigo, que trabalha na busca e operações, ele disse que precisou de cinco caras para dominar a potranca lá. Ela meteu porrada em geral, cara. A mulata né moleza não, mermão! Aí foi colocada no setor C, que é pros mais agressivos. Agora vai virar chiclete de zumbi, hahahaha.
-Hahahaha. – David ria por fora, mas a vontade que ele tinha era de chutar a cara daquele balofo de merda.
-Pior é que a Roberta estava querendo essa cobaia pra poder fazer uns teses com uns remédios de agressividade lá… Sabe qual é? Deve ser por isso então.
-Sei, sei. Bom… Vai dar a maior merda isso, mas faz o seguinte. Tu sabe onde que é a triagem C né?
-Sei.
-Vai lá e você vai ver um cara lá. O nome dele é Ronald. Diz pra ele que é pra separar a cela dela. Aí quando a Roberta mandar o formulário, o Ronald libera e manda a potranca xucra lá pra cima.
-Ah, tá. Valeu mesmo, hein?
-Vai lá. Agora se apressa, que é hoje que vai sair o lote lá da triagem C, cara.
-Valeu. Obrigado. – Disse David já saindo correndo pelos corredores. O elevador demorou interminavelmente para chegar. Ele pegou o elevador e desceu.
Chegou no setor C. Lá estava o tal Ronald. Era um cara magro, com cara de sono.
-Oi – Disse David, batendo na porta de vidro.
-Hã? Que você quer? – Perguntou o cara sem olhar pra ele, enquanto anotava coisas num papel.
-Você é o Ronald, né?
-E você, quem é? -Respondeu o magrelo, mal humorado.
-Eu sou o Marco… Do setor de pesquisas. Eu vim a mando da Roberta lá de cima… Pra falar com o cara lá da triagem A. Mas ele disse que é com você aqui.
-Cadê o formulário?
-O cara lá do A, o gordão, ele disse que ainda vão mandar o formulário.
-Porra, mas é sempre a mesma conversa! – Reclamou o magrelo no interfone.
-Eu sei, o cara lá do A também falou isso. Mas quebra essa aí, Ronald. A culpa não é minha cara… Você sabe como esta porra aqui está uma zona.
-Falô! Mas anda rápido que o sensor da porta tá um lixo. Malditos chinas e suas traquitanas de quinta categoria! – Disse ele, apertando o botão no notebook.
A porta de vidro se abriu e David entrou no corredor. Ele foi olhando janela por janela, mas não achou Alice. Havia ali uns homens mal encarados, pessoas com cara de loucos, e sujeitos tatuados com aparência perigosa, celas vazias, mas nenhum sinal de Alice.
David voltou até a mesa de Ronald.
-Estranho, cara.
-Não achou?
-Não.
-Como que era o que você estava procurando?
-Ela era alta, mais ou menos dessa altura, e era mulata… Ela tinha uns… Uns… Tipo, sabe como? – Fez simulando peitos no ar.
-Ah… A gostosa briguenta! Tô ligado. Era a única mulher neste setor!- Disse Ronald. Mas ele continuou: -Deu mole, meu camarada! Essa aí saiu hoje de manhã, no lote que foi pro setor de descarte. A mulher era maior chave de cadeia. Ninguém conseguiu nem chegar perto dela. Nem um beijinho, hahahaha. Sabe como é… O pessoal aqui gosta da carne macia… E tá sobrando gostosas fáceis no setor D. Já te falaram?
-Descarte? (David havia travado naquela palavra e não escutou mais nada que Ronald havia dito)
-Isso mesmo. Descarte… Tipo, rango de zumbi, tá ligado? Pra servir de isca pra uns parceiros aí…
-Puta que pariu!
David Carlyle despediu-se de Ronald. Voltou para seu quarto cabisbaixo. A palavra “descarte” não saía de sua cabeça. David parou em frente a porta de seu quarto, já ia entrar quando decidiu ir até o quarto de Clarck, no final do corredor, para tentar obter informações sobre o que exatamente era este descarte e como ele era realizado. David já tinha ouvido o Doutor Mayong dizer que as pessoas eram usadas em caminhões, como iscas para capturar e matar hordas de zumbis. Talvez Clarck soubesse alguma coisa que pudesse fazer a diferença e ajudá-lo a interceptar o tal caminhão em que Alice estava.
Ao chegar na porta do quarto 238, David ouviu uma conversa lá dentro. Ele colou o ouvido na porta para escutar melhor. Imediatamente ele percebeu a voz do senhor Hork, que discutia com Clarck.
-…E quando que vocês vão falar com ele? – Perguntou o senhor Hork.
-Tudo tem sua hora, senhor Hork. – Respondeu Clarck.
-Não me interprete mal, doutor Clarck, mas não temos muito tempo. Eu concordei com aquela ideia biruta de explicar com detalhes pro garoto a natureza das nossas operações. Mas você garantiu que conseguiria trazê-lo para o nosso lado, e eu até agora não vi muita empolgação naquele moleque.
-Calma, calma! Confie em mim. A esta altura já era para o senhor saber que não sou do tipo que comete erros de julgamento.
-Eu sei, mas estou achando muito demorado. Ele é deveras precioso para nós.
-Calma, senhor Hork. Ele nem desconfia de nada. Não há motivos para tanto desespero. Veja, a esta altura ele está dormindo feito um bebê no quarto dele. Vamos pegar ele daqui a pouco, levamos o garoto para tomar uns gorós e depois que ele estiver doidão, nós vamos convencer ele.
-Eu duvido que ele tope por esta via, doutor. Não me leve a mal, mas sou adepto da força bruta nesses casos. A gente enfia ele na jaula com uma daquelas coisas e deixa a natureza seguir seu curso. Que diferença que tem?
-Eu já falei mil vezes e vou falar novamente… A diferença é que se ele topar colaborar tudo será mais fácil. Não estamos tratando de uma pessoa comum. Ele é especial!
David estava escutando atrás da porta e não podia acreditar no que ouvia. Especial? Do que eles estavam falando?
Subitamente, uma coisa dura encostou nas costas dele. David ouviu atrás de si uma voz conhecida. Era a voz de Mayong:
-Que feio, hein? Ouvindo atrás da porta! Nem pense nisso.Se você se mexer, eu vou puxar este gatilho e vou abrir um buraco do tamanho de um limão na sua barriga.
David moveu a cabeça em sinal positivo e levantou os braços. Mayong abrou a porta.
Do outro lado, estavam Clarck e o senhor Hork.
-Mas que porra é essa? – Perguntou Clarck se levantando da cama, onde estava sentado.
-Peguei este espertinho escutando atrás da porta.
Clarck e o senhor Hork se entreolharam espantados.
- E ouvi tudo. Seus filhos da puta! – Disse David.
O Senhor Hork estava parado, apoiado numa pequena escrivaninha no canto da parede. Foi ele que falou:
-Então não temos mais necessidade de mentir ao senhor, não é mesmo, meu caro David?
-Que conversa é essa de me colocar numa cela com um zumbi? O que foi que eu fiz?
-David, espere. Acalme-se. Senta aí. Vamos te explicar tudo, cara. É só um mal entendido, meu amigo. – Tentou se explicar o velho Clarck.
-Eu ouvi tudo, palhaço. Não adianta tentar me adular com este papo de amigão. Eu ouvi você dizer que quer que eu passe para o lado de vocês. Você pretendia me embebedar. Mas afinal, pra quê? – Questionou ele sob a mira da pistola. Mayong agora apontava a arma diretamente para a cabeça de David. Era uma pistola militar, cujo cano se estendia com um comprido silenciador. Clarck sorriu, olhou para o chão.
-David, meu jovem… Você realmente ainda não percebeu o quão estranho é o fato desses senhores terem capturado todas as pessoas do abrigo e te darem este tratamento vip?
-Sim, eu já estranhei isso, mas até agora não entendi. O que querem de mim?
-David, você é especial, meu caro. Quando você desmaiou no abrigo, após a surra que levou daqueles roceiros idiotas, eu pude tratar de você. Eu notei que você não reagia a medicamentos. Então eu comecei a realizar alguns “testes” com você enquanto estava desacordado.
-Testes? Filho da puta! Mas que porra de teste?
-Sim, testes. Eu injetei morfina em você. E monitorei sua pressão sanguínea. No início achei apenas estranho, achei que talvez o remédio estivesse com algum problema, pois você não reagia… Aumentei a dosagem. Nada. Tripliquei, nada. Eu dei uma dose de morfina que daria para matar cem pessoas. E nada fez efeito.
-Desgraçado!
-Entenda, David. Era uma curiosidade científica. As marcas no seu braço mostravam, que você era um viciado hard-core… Mas não houve crise de abstinência! Eu sou médico, eu entendo dessas coisas. De cara eu vi que tinha alguma coisa de errada em você. Eu não podia deixar passar esta chance. Fui até o radio do helicóptero e contei ao senhor Hork que nós estávamos com alguém diferente. Alguém que simplesmente não morria.
-Foi aí que resolvemos invadir o abrigo e capturar todos. -Disse o senhor Hork com os braços cruzados.
-Mas então, quer dizer que…
-Aceita, David… Você é diferente, meu jovem. Nós pretendíamos contar isso pra você na mesa do restaurante, mas sua curiosidade não nos dá outra chance. -Disse Clarck.
-Mas… E se eu tivesse morrido? Você tentou me matar com uma overdose.
-Eu precisava saber o que estava acontecendo. Você é uma curiosidade médica. Tem algo no seu organismo, David. O tranquilizante que eles te aplicaram é usado para dopar elefantes.
-Por isso eu fiquei espantado quando te vi, ali, em pé naquele quarto, meu jovem. – Disse Hork.
-Tá, e do que vocês queriam me convencer?
-Bem… Você sabe, é como nós dissemos. As toxinas não fazem efeito no seu corpo. Não sabemos ainda o motivo disso, mas…
-Mas o que, porra?
-Mas talvez se você aceitar que nós injetemos o sangue contaminado em você, isso poderá nos dar uma base de dados sem precedentes, equivaleria a avançar muitos anos nas pesquisas com os remédios contra os zumbis, David. – Explicou Clarck.
-Tá maluco? Que porra é essa? Nem pelo cacete!
-David, não nos resta muitas opções. Nós vamos fazer isso, quer você queira, quer não. Ou colabora conosco ou seremos obrigados a usar a força. – Disse Mayong, segurando a arma perto da cabeça dele.
David ficou pensativo.
-Hummm. Ok… Digamos que eu aceite isso. Como seria?
-Bem, nós iremos retirar amostras de sangue do zumbi e inocularemos em você. E então iremos acompanhar… – Mayong começou a explicar os procedimentos, quando David Carlyle, usou o fator surpresa. Atingiu o cientista com um golpe nos genitais, enquanto desviava a arma com a outra mão. No reflexo, Mayong disparou a arma. David socou a cara do cientista até ele largar a arma. David pegou a arma no chão e quando olhou para a frente, viu que o Senhor Hork estava segurando o corpo de Clarck. O tiro havia atingido o pescoço do médico. E jatos de sangue escorriam sujando todo o quarto branco de sangue.
-Vai pra lá, filho da puta. – Apontou o canto com a arma. Mayong levantou-se, tonto, gemendo, a boca cheia de sangue. Foi até o canto. Clarck dava seus últimos suspiros. Estava agitado, se debatendo segurando o pescoço que jorrava uma cascata de sangue. Ele era amparado pelo senhor Hork.
David ficou ali, vendo aquele espetáculo macabro. Clarck deu o último espasmo e caiu mole na cama. Hork ajeitou os braços do idoso sobre seu peito.
-Ok, seu babaca. Eu quero sair daqui.
-Impossível! – Respondeu Mayong enquanto cuspia sangue na lixeira.
David não disse nada. Apenas apontou o cano da arma na direção do joelho do cientista e puxou o gatilho. A arma fez um barulho rouco, baixo como uma tossida. O joelho do cientista explodiu, lançando um jato de sangue que tingiu a parede.
-Aaaaaaaaargh! – Gritou o cientista oriental, caindo no chão.
-Eu não estou brincando. Quero sair dessa porra de hospício agora! – Disse David, olhando fixamente para Hork.
-Sim senhor, David. Mas eu lhe digo uma coisa… Está cometendo um grande erro, meu jovem.
-Cala a boca ô George Lucas de araque!
-Todos dizem que eu pareço com ele. – Riu Hork, tentando quebrar o gelo.
-Venha, vamos, você vai me mostrar como faço para sair daqui.
-Eu tiro você daqui, mas em troca quero que garanta que não irá me matar.
-Se eu sair inteiro daqui eu te deixo vivo.
Hork pulou o cientista, que se contorcia no chão de dor segurando o que restava do joelho esfacelado.
David saiu com o senhor Hork pelo corredor. Andaram apressados.
-Onde você está me levando? – Perguntou Hork.
-Para o centro de triagem “A”. Tem um amigo meu lá. Vem, é por aqui.
-Eu sei. Eu construí este maldito complexo! – Gemeu Hork, enquanto tinha a pistola forçada entre as costelas.
-Olha, eu sei que o senhor é importante. Que manda em todo mundo aqui dentro. Então o senhor vai fazer o que eu mandar. Ou eu vou estourar sua cabeça do jeito que fiz com o joelho do china lá.
-Certo. Certo. Não sou idiota, meu jovem. Estou vendo que você não está brincando.
David chegou ao centro de triagem “A”. Ali estava o gordão. Quando ele viu o senhor Hork, levou um susto e ficou em pé.
-Senhor Hork. Que prazer sua visita aqui na unidade!
-Cale a boca. Eu quero liberar um prisioneiro.
-O que??? – Assustou-se o gordão. -Que cela, senhor?
-Que cela? -Perguntou Hork ao David.
-96! – Disse David.
O Gordão sentindo o clima estranho, digitou códigos no computador e a cela 96 abriu.
-Wilson! Wilson! – gritou David.
Lentamente, uma cabeça saiu para fora da cela. Era Wilson.
-David! – Ele gritou com um sorriso.
-David? Mas você não chama Marco?
-Olha, meu amigo, é uma longa história! – Disse David, sacando a arma da cintura e apontando para o gordão.
-Que porra é essa? Calma, calma… Calminha, Marco, ops, David, ou sei lá quem você é! – O Gordão estava assutado.
-Entra lá na cela dele. Disse David, apontando com a arma a cela aberta.
-Mas…
-É isso ou é tiro! Prefere o quê?
O gordão olhou para o senhor Hork.
-Não seja estúpido rapaz. Faça o que ele manda. Ele é maluco!- Disse o empresário.
O gordão foi, a contra-gosto, andando até entrar na cela. David clicou em “trancar” no painel e a cela se fechou.
Wilson estava ao lado de David.
-Como você escapou, David?
-É uma longa história. Te conto quando sairmos desta joça. – Disse David. – Procura aí na gaveta, deve ter alguma arma.
Wilson remexeu na gaveta, mas não achou nada.
-Não temos armas neste setor. – Disse Hork.
-Ei, quem é o cara? É o George Lucas? – Perguntou Wilson.
-Eu sou o dono deste complexo. – Disse Hork com certo orgulho.
-Como que a gente sai daqui? Minha paciência está acabando.- David falou apontando a arma na testa do empresário.
-Saindo aqui, pegamos o elevador no fim do corredor e subimos até o nível zero. Lá no fim do corredor vermelho tem uma saída direto pela garagem.
- Vamos! – Disse Wilson.
Os três saíram pelo complexo. Andavam olhando ao redor. O Medo de David era que alguém os visse e disparasse algum alarme, atraindo os seguranças armados.
-Espere! Eu tive uma ideia. – Disse David, segurando Wilson e Hork.
Alguns andares acima, dois guardas estavam guardando a passagem da ponte que levava aos laboratórios.
No fim do longo corredor, surgiu o senhor Hork. Ele apenas apareceu e fez sinal para que os guardas viessem ao seu encontro. Os guardas se entreolharam e foram andando na direção do patrão.
Ao passarem por uma pilastra, foram alvejados com tiros de pistola. O primeiro caiu na hora, com um tiro na cabeça. O segundo tentou reagir, mas Wilson saltou sobre ele e David atingiu o guarda no peito.
-Vamos, arraste os corpos pra lá. – Disse David.
Hork e Wilson puxaram os corpos dos soldados, enquanto David recolhia os fuzis. Eles foram levados até a pilastra. Ali David esperou que Wilson retirasse o uniforme do soldado e vestisse aquela roupa e máscara. David então passou a arma para Wilson, e fez o mesmo. Os corpos foram escondidos num pequeno armário embutido na parede, próximo ao elevador.
Agora David, Wilson e Hork andavam com desenvoltura pela base. Hork passava pelas sentinelas, olhando fixamente pra eles, mas os dois homens que iam com ele pareciam apenas uma escolta padrão e não despertaram suspeitas.
-Na próxima vez que olhar assim com esta cara para os guardas eu meto uma bala na sua cara. – Sussurrou David.
-Tá bom, tá bom. Foi mal. – Sussurrou de volta o empresário.
Os três pegaram o elevador. Enquanto ele subia, lentamente, David perguntou ao senhor Hork o que tinha acontecido com o descarte do setor de triagem C.
-Eles foram para o norte. Vão capturar zumbis com eles. – Disse Hork.
-Mas como eu vou saber onde que eles estão?
-Não há como saber! Esses caras são loucos. Eles entram nas cidades pequenas, disparam gravações de pessoas gritando para atrair os mortos. Então soltam uma pessoa, que vai correndo de um caminhão a outro. Esta pessoa é a isca. Então os mortos correm atrás desta pessoa e ela entra no caminhão. Uma grade sobe do piso, separando-a da carga. O caminhão fecha, agora lotado de zumbis e a isca sai por uma porta na frente. O processo se repete até que os zumbis consigam agarrar a isca ou que ela não consiga mais atrair as feras. Neste caso, eles matam a isca e pegam outra do outro caminhão de… iscas, e então, repetem a dose. A meta deles são seis caminhões lotados de zumbi por noite. -Disse Hork.
-E quando o caminhão lota?
-Ele retorna para o ponto zero, onde descarrega o lote num autoforno. Não sobra nada. Ele esvazia e volta. São sete caminhões ao todo. Eventualmente as melhores iscas sobram para a noite seguinte. Mas não se iluda. São poucos os que conseguem durar mais de uma semana nessa atividade.
-Mas que coisa idiota. Por que eles se arriscam assim?
-Algumas pessoas simplesmente não podem esperar pela nossa solução. Além do mais, esta é uma forma de ocupação. Isso mantém os indivíduos mais perigosos afastados da nossa base.-Disse o homem. A porta do elevador se abriu, revelando uma série de portas e passagens.
Hork orientou os dois captores como eles deviam fazer para chegar na garagem.
Minutos depois, eles estavam chegando na garagem. Ali estavam vários carros. David apontou um dos veículos. Era um jipe militar 4X4, tipo Hummer.
-Bem, senhor David. Fiz o que combinamos. Espero que cumpra sua palavra e me deixe sair vivo desta sua aventura. -Falou Hork.
-Senhor Hork… Eu sou um homem de palavra. Não vou fazer nada com o senhor.
-Ok. – Disse Hork. Ele pegou um painel na parede e digitou uma senha de acesso. Então liberou a saída. As portas internas se trancaram. Uma sirene disparou e as portas externas se abriram.
-Adeus, senhor Hork. Não posso dizer que tenha sido exatamente um prazer.
-Eu digo o mesmo, David. Boa sorte, pois você vai precisar.
David correu para o jipe. Wilson já estava ao volante.
-Vamos, mete o pé aí meu amigo! – Gritou David.
Wilson não pestanejou. Acelerou o jipe, disparando em direção á saída.
Quando a porta daquela saída do complexo se fechou, Hork estava parado, olhando para a enorme porta de aço branca que se fechava ao longe.
-Moleque desgraçado! Você me paga! – Disse ele. (continua...)
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