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segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Menu Contos: Zumbi (Parte 03)

Clarck foi o segundo a adentrar a ponte. Ele era idoso, tinha por volta de setenta, talvez setenta e cinco anos. Embora aparentasse estar bem de saúde, avançava com uma certa dificuldade, compatível com sua idade.  David não compreendia o que levava essas pessoas a arriscarem-se tanto. Sob sua ótica correr tamanho risco para estocar comida num lugar seguro era tão perigoso quanto correr nas ruas cheias de mortos famintos.

Quando Clarck chegou do outro lado, Sam fez sinal para que David atravessasse. David estava morto de medo.

-Bora doidão. Não temos o dia todo! – Disse Sam, empurrando-o pelas costas com a escopeta.

David segurou firme nas cordas. Olhou para a frente. O vento balançava a ponte violentamente. Olhou para baixo, viu o jardim lá em baixo. Alguns carros. Ao longe via a avenida, os carros capotados, o lixo sendo levado pelo vento e os mortos parados ao sol.   Pareciam pequenos bonequinhos vistos daquela altura.

David colocou o primeiro pé à frente. Olhou para o outro lado e viu o velho Clarck e o garoto rindo dele. O garoto gritou que era para David não olhar para baixo.

David não gostava que rissem dele, e começou vagarosamente a avançar com cuidado. O vento era fortíssimo. David achou que ia morrer. Bastaria um pequeno descuido e a queda era fatal.

Quando chegou do outro lado, foi ajudado pelos outros dois para subir no parapeito onde eles esperavam.

Enquanto eles aguardavam Sam atravessar, David aproveitou para perguntar porque guardar a comida num lugar tão complicado.

-É que no início, haviam os saqueadores. – Disse Clarck.

-Saqueadores?

-Sim. Quando os grupos se dividiram e quando acabou a comunicação, começou uma espécie de guerra. Cada grupo precisava garantir a sobrevivência dos seus. As pessoas se desesperaram, porque não haveria comida para todos. Os grupos escolheram batedores que adentravam a cidade e traziam comida. Mas tinha grupos que preferiam roubar dos outros. Esconder o alimento era a saída. Assim, apenas nós três do nosso grupo que sabemos onde está a comida, e caso o prédio seja invadido por saqueadores, eles não saberão a real quantidade de alimentos, medicamentos, armas e provisões que possuímos. Se formos roubados, vão catar apenas o estoque da semana.

Agora David começava a achar a ideia da ponte insana algo engenhoso.Mas ele ainda tinha uma curiosidade.

-Senhor, quem é Mimi?

O velho pareceu ser pego de surpresa. Contraiu o rosto. Olhou para o horizonte em silêncio. O vento despenteava seus cabelos brancos. O rapaz, pousou a mão no ombro de Clarck e olhou para David. Foi ele quem disse.

-A Mimi era a filha dele.

-Ela morreu de que?

-Caiu da ponte.

-Essa?

-É.

David não sabia o que dizer. Clarck não olhava mais pra ele. Olhava para baixo. Foi então que David notou e olhou.  E viu uma grande poça vermelha bem na reta do meio da ponte.

-Que merda. – Disse David.

-Que merda. -Disse o jovem.

-Que merda. -Disse Clarck. Limpando os olhos.

-Vocês atravessam sempre nesta coisa?

-Sim. Sempre. A única passagem que existe é esta. A outra é uma saída, pelo esgoto da garagem. Foi por onde você veio, certo? -Perguntou Clarck desembargando a voz.

-Isso mesmo.

-Você deu sorte, menino.

-Por que?

-Porque a garagem está cheia de explosivos. Sob cada carro existe uma bomba. Querosene, gasolina, óleo diesel… Enfim. Nós usamos isso para evitar que caso os mortos descubram a passagem, consigam subir. A bomba pode ser acionada a distância com um walkie talkie modificado. Mas é uma opção de último caso.

Sam já havia cumprido a travessia e após passar para o outro lado do parapeito, apontou com a arma o caminho.

-Venha. – Disse ele.

Os quatro seguiram Sam.Eles chegaram até uma porta, que estava trancada. Sam abriu o cadeado, revelando a entrada das escadas.

Desceram pelas escadas, iluminando a escuridão com as lanternas.

À medida em que desciam, David sentia o ar mais pesado, mais quente. Sam, o garoto, David Carlyle e Clarck chegaram a uma porta no quinto andar. Sam deu três socos na porta. O eco se espalhou pelas escadas.

Após algum tempo, um barulho de uma grossa tranca estalou e a porta se abriu. Ali estava Caleb.

Caleb era um jovem magro. Tinha um boné de baseball e vestia uma jaqueta militar. O rosto queimado de sol indicava sua procedência árabe.

Sam entrou, segurando David pelo braço. Ao entrar no lugar, David se espantou ao ver que a sala, uma construção bem mais ampla que a do outro prédio, estava repleta de cordas, do qual pendiam lençóis, dividindo os ambientes em dezenas de pequenas cabanas. Parecia uma mini-cidade.

-Todos moram aqui? – Perguntou ele. Mas Sam não lhe deu atenção. Avançou por entre as cabanas carregando a mochila. Logo surgiam diversas pessoas, todos rostos desconhecidos. Todos queriam saber quem ele era, o que ele fazia lá.David se viu cercado por crianças, velhos, homens e mulheres.

Então, uma voz potente soou acima de todas as outras. Era o Reverendo.

As pessoas se viraram e David deu de cara com um homem negro, de barba branca, curta e rala. Não era tão alto quanto Sam, mas tinha um barrigão de papai-noel.

-Deixem o menino em paz. – Disse o Reverendo sorrindo. O bolinho de gente se diluiu rapidamente.

O reverendo estendeu a mão.

“Reverendo Nicolas. Muito prazer.”

David retribuiu o aperto de mão. A mão do homem era fortíssima e esmagou-lhe os ossos com uma clara demonstração de força e entusiasmo.

” Por favor, meu jovem. Me acompanhe.” – Disse ele, agarrando David pelo braço e levando de volta as escadas.Enquanto andava perguntava como ele estava, se estava com fome, ferido ou se queria água ou refrigerante.

David seguiu o reverendo pelas escadas para o andar debaixo. Eles desceram, acompanhados de pelos menos uns três caras, que portavam armas.

Chegaram no terceiro andar e havia um sujeito armado na porta. Ao ver o reverendo ele acenou com a cabeça e abriu o cadeado. Era uma sala escura.

“Venha, David.  Siga-me. Vou lhe mostrar uma coisa.” – Disse o Reverendo.

O jovem acompanhou o homem para dentro da sala escura. Os homens armados foram atrás. A porta se fechou atrás deles, numa batida que ecoou na alma de David.

Ele não via nada, mas sabia que o Reverendo estava ao seu lado.

Após alguns minutos, uma luz fraca se acendeu. Era uma lamparina a gás.  E David viu uma cadeira no meio da sala. Era só isso. Uma cadeira no meio de uma sala enorme, sem janelas.

-Senta ali, meu garoto. – Disse o reverendo.

David estranhou, mas obedeceu a ordem daquele homem gentil.

Lentamente os homens que estavam atrás do reverendo cercaram a cadeira. E David ficou na frente do Reverendo Nicolas.

-Você está confortável? – Perguntou o Reverendo.

-Sim senhor. – Disse David.

O Reverendo acenou com a cabeça, e um homem forte agarrou David pela garganta. Começou a estrangulá-lo. David, pego de surpresa, tentou se mexer, mas enquanto o homem o estrangulava, os outros começaram a amarrá-lo na cadeira.

David não consegua respirar, sentiu tudo rodar. Sua visão escureceu e ele desmaiou.

Acordou com um balde de água jogado na cara.

Ele não entendia o que estava se passando. Não sabia direito onde estava. Um cara agarrou a cara dele e apontou na direção do reverendo.  Agora o Reverendo estava na frente dele, parado. A postura impávida de um ditador.

-E aí? De que grupo você é?

-Hã? Eu? Desculpe. Eu não sou de nenhum grupo. Estou por minha conta.

-… – O reverendo se manteve em silencio. Então olhou para o homem atrás da cadeira e novamente acenou com a cabeça. O cara deu um soco na cara de David. Aquilo doeu. Sua boca encheu de sangue ele e sentia vontade de vomitar. As cordas estavam apertadas demais e uma delas passava bem em cima do machucado no braço. David cuspiu o sangue no chão branco. O Reverendo voltou a falar.

-Vou perguntar novamente. E agora você vai abrir esse bico. Como que você descobriu o depósito, moleque? – A postura empolgada e cordial do Reverendo Nicolas dava lugar a um homem bruto, assustador, com cara de maníaco.

David foi violentamente espancado durante um longo tempo. Após a cadeira cair em meio a  surra, foi chutado varias vezes e a cada desmaio, era acordado com baldes d´água na cara. Vendo que ele não ia falar, o Reverendo disse apenas:

-Cuidem dele. É de vocês. – E saiu. Deu dois socos na porta. E o homem da escada abriu. O Reverendo saiu e David ficou ali, cercado por aqueles homens estúpidos. Pareciam soldados. Um deles, que vou chamar de Joe por puta falta de outro nome,  tinha cara de gerente de banco. Usava o cabelo penteado pro lado e um óculos de aro grosso, colado com fita crepe. Este era o mais violento.

Além de Joe, estava Jack. Este era um sujeito magro, porem forte. Ele mais parecia um jogador de basquete, com braços compridos e olhos avermelhados.   Ao lado de Jack estava Kirby, um cara baixinho, meio ruivo, cheio de sardas, que tinha duas enormes orelhas de abano, e que usava um chapéu ridículo de caçador. Kirby era o mais estranho, pois tinha cara de pirado e vestia uma camiseta do tipo I love NY, cinto e botas de cowboy . Parecia um completo boçal, mas segurava um fuzil, sempre apontado para a cabeça de David Carlyle.

David examinou cada um daqueles homens. Eles estavam parados ao redor dele. Saboreavam aquele momento. David sentia um medo absurdo de morrer.

Os homens se entreolhavam em silêncio. Parecia que estavam escolhendo quem iniciaria a sessão de pancadaria que estava prestes a rolar naquele lugar sem janelas. Foi Kirby que começou a falar.

“Eu acho que ele não vai colaborar.” – Disse Kirby. Nisso, Joe deu um tapão na cabeça de David.

-Ung! – Resmungou David com dores.

O sujeito que parecia um jogador de basquete ficou mudo o tempo todo. Apenas assistiu quieto.

Joe voltou a espancar David com socos. Mas Kirby interferiu.

-Calma, cara. Calma. Eu tenho uma ideia!

-Que?

-Vamos descer ele pro primeiro andar. – Disse com um sorriso maníaco.

Todos os homens se entreolharam. E então sorriram maldosamente.

Minutos depois, David amarrado com fios elétricos era empurrado com brutalidade pela escada abaixo. Chegaram em uma porta de grades grossas. Kirby pegou a chave e abriu o cadeado. David foi levado até uma espécie de platô, que dava para um pátio interno, ligado à rua por uma espécie de praça, onde corpos pútridos boiavam num chafariz.

Traz a corrente lá. – Disse Joe ao Jack. O homem mudo virou as costas e sumiu atrás de umas pilastras. David levou dois chutes na boca do estômago. Estava caído. Cansado. A boca não parava de sangrar. Seu corpo inteiro doía.

Ele não conseguiu mensurar quanto tempo se passou na sessão de espancamento no segundo andar. Ela só parou quando Jack chegou com uma mala preta de rodinhas. Ao abrir, ela estava repleta de uma corrente grossa. Os homens esticaram a corrente e deram voltas no corpo dele. David queria implorar por clemência, mas estava fraco demais. Seu corpo estava mole. Os homens pareciam se divertir.

Amarraram seu corpo com a corrente e Jack e Kirby começaram a içá-lo no vazio. Lentamente, foram descendo a corrente, e quando ela finalmente  parou de descer, David abriu os olhos e viu que estava a menos de meio metro do chão, pendurado como um boneco, de frente para a praça.

Ele sabia que seria uma questão de tempo até que algum morto acabasse por vê-lo. O ser horrendo iria emitir um daqueles gritos grotescos  e em pouco tempo uma multidão de corpos iria se aglomerar á sua volta, tentando morder sua carne.

David quis gritar, implorar por socorro, mas sabia que aquilo apenas apressaria seu fim, atraindo os mortos mais rapidamente.

O que ele fez foi ficar parado, como se estivesse morto. O tempo passou, e as correntes agora pareciam se entranhar na carne dele, tamanha a dor que David Carlyle sentia.

O vento balançava aquele ioiô-humano de um lado a outro. E ele já não ouvia mais os risos e gargalhadas dos três malditos.

O sol estava se pondo, levando consigo os últimos raios de dia. David notou a sombra azulada dos prédios lentamente se movendo pela rua. Ao longe, via os corpos parados em pé na avenida.  David sabia que se ele podia vê-los, também poderia ser visto.

O tempo avançou lentamente. Cada segundo era um suplício. Cada minuto uma eternidade. David tentava não pensar naquela situação. Passou a olhar o chão. Os ladrilhos da praça. Os corpos boiando no que outrora tinha sido uma bela fonte de frente para uma sorveteria cara.

E agora ele estava ali, como uma carne de açougue, balançando pra lá… Balançando pra cá… Pra lá e pra cá…

Então ele ouviu um ruído. Apenas moveu os olhos. E viu a cerca de uns dez metros um morto que cambaleava lentamente em sua direção.

David sentiu um calafrio percorrer seu corpo. Não havia como se mover. Nem como gritar. O cadáver deu uns três passos e estancou. Agora ele estava parado, mas eventualmente, olhava na direção de David.

O vento da noite entrava pelo vão dos prédios, e balançou a corrente. David continuou se fingindo de morto.

Então o zumbi subitamente se moveu.

David soube na hora que ele havia sentido o seu cheiro, levado pelo vento.

O zumbi andou de modo desconjuntado, gemendo baixinho. Passo após passo, ele veio cambaleando na direção de David. Agora o zumbi estava a menos de dois metros dele. David já podia sentir o cheiro de podre que aquele corpo exalava.

David tentava manter os olhos semicerrados, como se estivesse morto. O sangue, os cabelos desgrenhados, sua aparência péssima realmente contribuíam para parecer que ele tinha morrido.

O zumbi começou a vir…

Passo após passo, aquela coisa cambaleou na direção de David Carlyle.
Ele tentou se mover, se soltar das correntes, de modo que o zumbi não percebesse, mas elas estavam muito apertadas. David contemplou sua morte como um copo prestes a transbordar sendo enchido com conta-gotas. Tudo que ele queria é que aquilo acabasse logo. Que aquele morto infecto avançasse sobre ele e que o espetáculo grotesco da carnificina se iniciasse. Mas o desgraçado era lento demais.

O zumbi parou a poucos metros de onde ele estava e ficou olhando. David se manteve quieto. Talvez a criatura desistisse, ou simplesmente estancasse, como eles pareciam fazer às vezes.
O zumbi ficou ali parado e David Carlyle deu uma boa olhada naquela figura.
Era um velho decrépito, que provavelmente quando ainda era vivo já se parecia com um zumbi. David achou graça naquele pensamento repentino poucos segundos antes de morrer à dentadas.
O velho usava um calção vermelho e tinha uma camisa social rasgada que antes de ter aquela cor de lama e sangue coagulado deve ter sido branca. O zumbi aparentemente era cego de um olho. David não conseguia ver direito dada a distância e a corrente que passava pela cara dele, mas tudo dava a entender que aquele zumbi tinha uma catarata em avançado grau, que o impedia de enxergar as coisas ao seu rerdor.
Esta era uma boa possibilidade para o fato do zumbi ter ficado parado olhando fixamente pra ele, enquanto rebolava estranhamente, tentando manter o equilíbrio. O movimento descoordenado e vagamente mecânico lembrava o de uma pessoa que aprende a andar. David lembrou dos tempos da escola. Havia um garoto, chamado Timmy que sofria de paralisia Cerebral. Ele se movia com aquele tipo de movimento estranho.
David pensou em Timmy. Onde estaria aquele garoto? Certamente havia sido comido, ou transformado também. Mas qual o futuro de um zumbi numa cadeira de rodas? Aliás, qual o futuro de um zumbi, seja andando, correndo e etc. Está morto mesmo… Então tanto faz.
David se surpreendeu com aquele pensamento.

O zumbi idoso estava ali parado. Mas subitamente começou a andar novamente.
“Ah, não. Puta que pariu. Lá vem ele.” – Pensou David enquanto balançava lentamente na corrente.
A cada passo do velho, David repetia mentalmente: “Pára vovô. Pára vovô…” Mas o “vovô” não parava. Ele vinha direto na direção de David.

Então o zumbi chegou perto o suficiente para que David se desesperasse. David Carlyle analisou suas chances e eram perto de zero. Mas talvez, se o zumbi se posicionasse bem na frente dele, talvez fosse possível tentar dar-lhe um chute. Certamente que aquilo não iria adiantar nada, mas David não pretendia se entregar sem lutar.
O zumbi estava agora a menos de três passos dele. David mantinha-se respirando devagar para não atrair a atenção da coisa.

“Vovô” Deu mais um passo e ficou exatamente na posição que David havia planejado. Era o momento. Não haveria margem para erros. “Vovô” deu mais um passo e pareceu finalmente enxergar David.
A criatura arreganhou a boca quase sem dentes, e começou a levantar os braços para o ataque. David tentou chutar, mas as correntes o impediram. Vovô se aproximou da cara dele e David fechou os olhos esperando a mordida. Subitamente, ouve uma explosão. David ficou sem escutar nada além de uma campaínha. Quando abriu os olhos, viu o corpo do Vovô sem a cabeça, caído no chão. Ele se apavorou. Não ouvia nada. Tudo parecia ocorrer em câmera lenta.

David estava todo sujo dos restos dos miolos do velho. Olhou para o único lugar que as correntes permitiam, que era a entrada do pátio interno. Surgiram mais dois zumbis.
“Ah, não. De novo não!” – Falou ele.
Mas então a cabeça do primeiro zumbi estourou, espelhando um caldo marrom na parede do predio.
David não conseguia olhar de onde vinham aqueles tiros. Ele não conseguia escutar nada além do zumbido.
O segundo zumbi veio correndo na direção dele. Agora o som começava a voltar. O ruido no ouvido ainda era muito alto. A criatura vinha gritando e correndo de modo estranho, quando outro estrondo ecoou no pátio interno. O joelho do zumbi estourou e ele voou cerca de meio metro até cair de cara no chão. David pensou que era mais um cadáver ambulante liquidado, porém, o bicho levantou a cabeça e olhou pra ele. Ela começou a se arrastar. A criatura não se deu por vencida. David não enxergava o atirador, mas ouvia os estampidos, que ecoavam entre os prédios, como explosões.
A criatura veio rastejando na direção dele. David começou a gritar por socorro.

Houve então outro estampido, mas o ladrilho estourou ao lado da criatura. Ela continuava seu rastejar, vindo na direção dele. David sabia que agora os tiros estavam atraindo verdadeiras multidões de mortos na direção de onde ele estava.
A criatura já estava bem perto dele quando finalmente sua cabeça estourou com outro tiro, deixando um tipo de copo esfacelado do qual minou um sangue escuro.

- Puta que pariu! Socorro! Me tira daqui! – Gritava David.
E então ele sentiu que a corrente deu um solavanco.
- Me sobe! Me sobe! – Ele gritava sem conseguir olhar pra cima.

Mas ao contrário do que ele esperava, a corrente soltou e ele bateu violentamente no chão. Caiu por cima da poça gosmenta do sangue do “vovô”. Agora David estava numa situação ainda pior. Estava no chão, amarrado fortemente, embebido no sangue da criatura, sem poder levantar ou reagir.
David começou a se contorcer como uma minhoca, na esperança de conseguir se arrastar para debaixo do banco da pracinha. Ele estava concentrado na operação de se arrastar enquanto ouvia os estampidos altos dos disparos vindos de cima.
Na entrada do pátio surgiram mais mortos. David preferiu não olhar. Apenas ouvia os tiros. Toda sua concentração estava em chegar naquele banco, rolar para debaixo dele e esperar não ser visto até que um improvável socorro viesse ao seu encontro.
David calculou que a situação estava feia quando os tiros, espaçados, começaram a ficar seguidos, como rajadas de metralhadora. Ele identificava de ouvido tiros de pistola e rifle de precisão. Subitamente uma das criaturas agarrou as pernas dele. David se debateu o quanto pôde, tentando se livrar da coisa. Mas era impossível.

-Calma! Calma! Fica parado, maldito! – Ele ouviu uma voz de mulher. David virou o rosto embolado na corrente e só conseguiu ver uma bota de cavalariça. Ele sentiu pessoas agarrando seu corpo e lentamente as correntes começaram a ser retiradas.
-Algum te arranhou? Algum te mordeu?
-Não, não. Estou… Bem.
-Não. Não tá não. Vem, vamos.
Era uma moça muito bonita, de pele morena, que usava uma jaqueta militar. Ela tinha no ombro um fuzil de sniper enorme, com mira telescópica. Ao lado dela estava o garoto, que ele havia conhecido quando Sam e Clarck o surpreenderam no depósito, mas que ele não sabia o nome.
O garoto acabava de arrancar as voltas da corrente das pernas dele quando a mulher apontou o fuzil para a entrada do pátio interno e começou a atirar.
- Lá vem mais!

Um a um os mortos caíam após ser alvejados na cabeça.

O garoto conseguiu tirar a corrente e a moça indicou o caminho.
-Você consegue andar? É por ali! – Ela perguntou sem olhar pra ele, ainda com a cara na mira da arma.
-Acho que sim! – David gritou enquanto ela atirava.
-O quê?
-Acho que consigo!
Apoiado pelo jovem, que também disparava tiros de pistola, eles começaram a se retirar para o fundo da praça.
-E atirar? Você consegue? – Perguntou o rapaz.
-Naquilo lá? Lógico!
O rapaz então deu uma das armas pra David.

O lugar era uma espécie de beco largo, fechado por prédios de todos os lados. Era uma praça que não parecia ter saída. Do outro lado, bem na entrada que dava pra avenida, uma enorme quantidade de mortos começou a se formar. Cada tiro atraía mais e mais a atenção.

-Vamos morrer. – Disse David olhando para a multidão entrando pela praça. Alguns já chegavam perto do chafariz rosê, no qual corpos inchados boiavam. David o rapaz e a moça se apertavam contra a parede de concreto que fechava a passagem ao final da praça.

O rapaz pegou o radio e gritou:
-Agora! Estamos prontos.

David viu acima deles um facho de luz e o som das potentes pás do helicóptero faziam um grande estrondo sobre eles. Uma ventania danada tomou conta da praça e Enquanto David disparava naquelas coisas, desceu uma caixa amarrada numa corda grossa que mais parecia de navio. A caixa de madeira bateu ruidosamente na frente deles.
A moça parou de atirar e pulou dentro daquela caixa. O jovem fez o mesmo e os dois puxaram David lá pra dentro. Os zumbis já se aproximavam perigosamente. O jovem gritava no radio.
-Vai, vai, vai porra!

Todos eles atiravam nas criaturas que vinham em desabalada carreira, tentando alcançar a caixa. Alguns tropeçando nos corpos caídos.
-Atira na cabeça! – Gritou a moça.
O rapaz olhou pra cima e gritou: – “Segura aí! Vai dar um tranco.”
David não poderia esperar que o tranco fosse tão forte. A corda deu um puxão e em menos de um segundo aquela caixa de madeira subiu ao céu como um foguete.
Todos gritaram de pavor. A caixa subiu e depois caiu. David tentava se agarrar precariamente às cordas.
Quando o balanço estabilizou, ele viu a multidão de mortos se aglomerando abaixo deles. Olhou para a moça ao seu lado. Ela era mesmo muito bonita e olhava fixamente pra ele. David desviou o olhar com vergonha.

Enquanto o vento e o barulho das pás do enorme helicóptero impediam David Carlyle de falar e agradecer aos dois, ele pensou que aquela imagem das pessoas se aglomerando na frente dele era o que sempre tinha desejado. Aquela visão devia ser como um astro de rock vê seus fãs durante os grandes shows que David assistia na Tv.

O Helicóptero voou por cima dos prédios. David reconheceu a precária ponte de cordas que havia atravessado e teve um vislumbre do crepúsculo que se derramava nos céus da cidade. Ele tornou a olhar a moça, que continuava a olhar fixamente pra ele. Ela sorriu revelando os dentes, branquíssimos. David conseguiu ver que ela tinha um corpo escultural apesar da jaqueta militar, das botas altas e das calças jeans folgadas, alguns números maior. O aparelho se aproximou lentamente do heliporto no topo do edifício.

-Segura aí que vai porrar! – Gritou o jovem pra ele. David e a moça abaixaram-se esperando o impacto. Ela estendeu a mão e David segurou firme nas mãos dela.
A caixa bateu de cheio no meio do heliporto.
Os três pularam fora da caixa e em seguida, alguém do helicóptero jogou a corda. A aeronave descreveu um volteio no ar.

David ficou olhando o aparelho fazer um giro. A moça agarrou ele pelo braço e apontou para a corda. David entendeu que eles teriam que tirar aquela caixa do meio do heliporto, para que a aeronave pudesse descer.
Eles agarraram firma a caixa e a corda. Era um peso desgraçado. Aos poucos conseguiram puxar a caixa para o canto, liberando o espaço para a descida do aparelho. Quando o helicóptero finalmente desceu, em meio a ventania, David leu na lateral: “Águia de Fogo”. Ele conseguiu ver os dois pilotos e o ajudante, de macacão cinza, descendo da aeronave. Sentiu uma súbita sensação de alívio.
Ele havia conseguido.
Então caiu no chão e desmaiou de exaustão.



Quando David recobrou os sentidos, estava deitado numa barraca. Sentiu uma dor profunda no braço. Tentou se virar e seu pescoço doeu.
-Ung! -Gemeu de dor.
“Calma Guri. Essa coisa aqui não está nada boa.” – David reconheceu aquela voz. Era Clarck.
-Clarck?
-Você desmaiou, rapaz. Ficou fora do ar três dias. O que aconteceu?
-Hã? Que? Três dias? Estou com sede…
-Tome. Bebe devagar. – Disse Clarck oferecendo-lhe um copão de água. David foi pegar o copo e viu que estava recebendo soro.
-Que isso?
-Você estava desidratado, David. Calma, eu sou médico.
-Médico?
-Sim, sou geriatra. – Disse Clarck rindo.
-Não sei se estou tão velho para precisar de um geriatra, Clarck.
-Olha o lado bom, David. Não sou proctologista.
David riu do velho senhor. Ele parecia gentil.

-Quem é a moça?
-Calma. Descansa, David.
-Eu…. Que roupas são essas?
-São minhas. Eu tive que tirar as suas por causa da contaminação. E porque estavam, bem… Você sabe, você entrou pelo esgoto. Lembra?
-Contaminação?
-Sim, não te falaram da contaminação?
-Não sei… Estou confuso. Que dia é hoje? Hung, minha cabeça dói.
-Então relaxa. Você está limpo. Essas coisas… Se elas te mordem, te contaminam, e você vira uma delas. Outra coisa, David. O dia não faz mais diferença. Cada dia é um dia a mais que sobrevivemos.
Enquanto preparava uma maleta, de costas para David no interior da cabana, Clarck ia falando.
- Você é um rapaz de sorte, meu amigo. Não são muitos os que passaram tão perto deles e saíram vivos para contar a história. Essas coisas não são de brincadeira.
-Não foi porque eu quis, pode ter certeza, Clarck. E na minha terra, levar uma surra de malucos psicopatas e depois ser jogado para virar ioiô humano não é o que eu considere exatamente como sorte.
-Malucos? Do que você está falando?
-Os homens do Reverendo Nicolas… Eles me levaram para uma sala sem janelas, me torturaram, me espancaram, cara. E eu não fiz nada.
Clarck pareceu levar um choque.
Ele fez um sinal estranho com a mão sobre a boca. Apontou com o polegar para trás do ombro. Enquanto isso falou pausadamente:
-David, a pancada deve ter sido forte. Você teve uma alucinação. O reverendo é um cara legal. Devemos nossas vidas a ele.
David não entendia o que o homem idoso estava falando. Ele só entendeu quando Clarck jogou pra ele um pequeno papel no qual acabara de anotar uma coisa:
“Nós sabemos. Mas não podemos fazer nada ou ele nos mata. Haja como nós para sobreviver.”
David leu aquilo e olhou para os olhos de Clarck. Ali estava um homem aterrorizado.
David balançou positivamente a cabeça.

-Agora deite aí. Você precisa descansar. Vou cuidar desses hematomas. Acho que você está com uma costela fraturada. – Disse embolando o papel e enfiando no bolso. Ele então pressionou o peito de David.
-Aaaaaaai!
-Dói aqui?
-Porra, que que cê acha?
- E aqui?
-Não, aí não.
-Hummm. Não é tão grave.

-E aquela mulher, Clarck? Você não me respondeu.
-Ela… Bem, ela é a filha…
-Hã? Quem? O quê?
-O nome dela é Alice, ela é a filha do Reverendo!



- O que? Ela é a filha daquele desgraçado?
-Shhh! – Clarck tampou a boca de David Carlyle. Ele parecia nervoso.
O velho médico olhava insistentemente para o relógio e eventualmente sobre o ombro, como se estivesse sendo vigiado. David percebeu o nervosismo da Clarck. Acenou com a cabeça e o medico destampou seus lábios.
David fez sinal com as mãos e moveu a cabeça em um tom questionador. Certamente havia algo de errado.
Clarck pareceu não querer contar. Baixou a cabeça.
-Você precisa descansar. E colocar gelo nesse joelho aí. Eu vou sair agora. Logo mais eu volto para ver como você está.

-Calmaí, Clarck. Eu vou ficar aqui nesta cabana? Esta não é sua barraca?

-Não, esta nós reservamos para ser tipo uma… – Clarck hesitou, procurando a melhor palavra. -…enfermaria de emergência.
-Quanto tempo vou ficar aqui?
-Bem… Tudo depende da gravidade dos seus ferimentos. O braço ainda está infeccionado, e correr com feridas abertas pelo esgoto não é uma boa ideia… Neste caso, você deve ficar uns dias aqui. – Disse Clarck escrevendo novamente algo num pedaço de papel. Ele virou a folha de modo que David pudesse ler.

“Eles estão de olho em você. Não faça merda. Não saia da barraca! Ou vão te matar! Confie em mim.”

David acenou positivamente. Clarck embolou o papel e enfiou no bolso do jaleco surrado.
-Logo mais eu volto.
-Até mais, Clarck.

Clarck saiu da barraca, deixando David Carlyle sozinho. Ele ficou ali, deitado num saco de dormir sobre um colchonete no chão. David examinou a barraca cuidadosamente em busca de uma câmera ou algo do tipo, mas não parecia haver nada. A hora parecia não querer passar. Sua vontade era de sair dali, encontrar o maldito Reverendo Nicolas e devolver na mesma moeda a surra que havia levado dos seus capangas.
David já não conseguia mais tirar aquela mulher da cabeça. Ela era linda. E parecia tão decidida, tão forte… Era mulher de fibra, sem dúvida. Pelo menos é o que parecia com aquele enorme fuzil de longo alcance nos braços.

Gradualmente uma roleta de pensamentos desfilou diante de sua mente. David rememorou todas as situações assombrosas que o levaram até aquele lugar. Notou que havia passado grandes perigos lá em baixo com os mortos-vivos, mas nenhuma daquelas horrendas criaturas havia planejado com tamanha frieza um golpe contra a integridade dele quanto aquele sujeito.
-Porra de lugar maldito. Os mortos são menos perigosos que os vivos! – Pensou alto.

Os pensamentos de David agora voltavam-se para a forma apreensiva com o qual Clarck o havia tratado. Era como se as pessoas vivas estivessem num curral, sob o controle de um déspota insano, que parecia ser tudo, menos um sacerdote.
David ficou pensando por que razão o tal reverendo havia mandado aqueles sujeitos o torturar. Ele queria saber algo sobre um grupo… Mas que grupo? Ele lembrou-se que Sam havia contado sobre os sobreviventes terem se dividido em grupos e que gradualmente a comunicação entre esses grupos foi se esgotando, até se tornar completa a filosofia do “cada um por si”. Talvez o homem tivesse a certeza de que ele fosse uma espécie de batedor de algum grupo de sobreviventes farejando por comida e armas.
Ele estava entregue aos pensamentos quando surgiu um ruído de tranca se abrindo.
David ouviu passos ecoando num corredor. Os passos vinham de fora da barraca. Lentamente foram se tornando mais e mais altos. Estava vindo alguém.
David se manteve firme, deitado onde Clarck havia informado.
A barraca se abriu e David viu o garoto.

-Nossa, que diferença! Sem aquela barba e sem a sujeira toda em cima, você fica bem mais apresentável, David. E aí? Como que você tá? – Perguntou ele.
-Tô melhor… Cara foi mal. Esqueci o seu nome.
-Esqueceu não, você não sabe mesmo. Eu nunca te disse.
-Ah… É mesmo. E qual é?
-Wilson.
-Ah. Prazer Wilson. Eu sou David.

Wilson se sentou ao lado dele na barraca. Ficou em silêncio enquanto olhava a pequena lamparina a gás pendurada no teto, que iluminava o interior da barraca.
David sentiu que o jovem queria lhe perguntar alguma coisa.

-Diga, Wilson. -Falou David, meio sem saber qual seria a reação do rapaz.
-Ela tá amarradona em você, cara.
-Quem? – Tentou disfarçar David.
-Você não é idiota. Não me tome por bobo. -Respondeu rispidamente o rapaz.
-Ok. Mas ela que te falou?
-Não, cara. Eu vi. Eu conheço ela faz tempo. Eu tô ligado nas paradas. Eu nunca tinha visto ela ficar contra o pai dela, meu. Mas você conseguiu que ela comprasse uma puta briga com o homem lá. Agora as coisas estão complicadas lá em baixo.
-Lá em baixo?
-Shhh. Fala baixo, cara. Tem nego lá na porta, de guarda. Tu tá preso, meu.
-Porra mas o que foi que eu fiz?
-Nada cara. É que… bem, é complicado te explicar tudo, assim do nada, mas é que os caras aqui… Tipo, ficou todo mundo meio lelé, sabe como é?
-Meio lelé?
-Eles estão sempre achando que vai vir alguém matar eles. Que vai aparecer um monte de gente pra roubar a comida, as pessoas. E tá ficando cada vez menos gente… Aí tu aparece… Pensaram logo que você era um “dos brancos”. Não vou negar que a ordem era pra te matar. Você acreditou que a gente ia te soltar no esgoto?
-Hum… Não. Eu sabia que a coisa ia feder.
-Ia sim, cara. Ia feder legal pro seu lado. Mas não sei no que deu na cabeça lá do Reverendo, cara.
-Wilson, me fala mais desses “brancos” cara. Que porra é essa?
-David, o lance é que todo mundo morre de medo deles. A gente não sabe quem são eles. Basicamente a gente está fugindo deles faz um tempão. No início, nós éramos muitos mesmo. Acho que tinha mais de cem pessoas no acampamento. Estávamos acampados num supermercado. A gente estava em contato por radio com um pessoal que se isolou dentro de um clube, do outro lado da cidade. Eles estavam sem transporte e o clube era muito longe. Eles estavam cheio de gente doente, sem comida. Estavam numa merda danada mesmo. Naquele tempo, a gente achava que uma hora isso tudo iria acabar, que o exército ia varrer os corpos pra debaixo do tapete e tudo voltaria a ser como era antes. Então, nós decidimos ajudar aqueles caras. A gente tinha um caminhão do mercado, e certo dia, ao amanhecer, mandamos um caminhão lotado de comida para abastecer o clube.
Mas quando o caminhão chegou lá, eles não abriram o portão. E não respondiam mais pelo radio. Quando o Sam conseguiu entrar, cara… Tinha sumido todo mundo.

-Sumido?
-É, meu. Mais de cinquenta pessoas. Velhos, mulheres, crianças… Todo mundo sumiu. Menos uma.
-Quem?
-A Evelyn. Uma menina de nove anos, que estava meio doente. Ela estava debilitada, cara. Dava pena de ver. A canelinha era isso aqui ó.
-E o que ela contou?
-Ela disse que “eles” vieram de noite. Uns “homens brancos”. Eles pegaram as pessoas e colocaram num caminhão. Ela se escondeu dentro do forno do clube e só por isso escapou. Disse que eles bateram nas pessoas que se recusavam a entrar no caminhão lá. Que foi uma gritaria danada. Teve gente que levou tiro. Mas ela estava muito fraca, e como é pequena, conseguiu se esconder no forno desligado. E então ela ficou sozinha. Daí quando o Sam achou ela, ele trouxe a Evelyn pra cá, onde nós cuidamos dela.
- Mas e as outras pessoas?
-Sumiram, cara. Eu disse.
-Mas… Sumiram, assim? Sem mais nem menos? E o tal caminhão, quem eram os homens brancos?
-Ninguém sabe, cara. A gente estava nessa época no mercado, e de lá, tinha um radio amador que mandava pra nós uns informes. Dizia onde estava mais infestado e etc. O cara sabia de tudo e funcionava bem a comunicação, porque ele era o funcionário de uma radio de rock, que tinha se refugiado no prédio da radio. Como acabou a energia, ele conseguiu fazer uma gambiarra lá com bateria de carro e passou a usar a antena da radio para enviar radio-amador. Esse cara avisou pra gente que os grupos de refugiados da cidade estavam reportando baixas durante a noite. Que não era pra ninguém sair nem viajar. Tinha uma galera que estava na estrada, e esses caras tinham dois trailers e acamparam numa mata. Eles estavam fugindo da confusão quando no meio da noite um helicóptero desceu e pegou algumas pessoas.
Sobrou uma velhinha que fingiu de morta e um cara, que na hora estava debaixo do trailer, consertando um vazamento do motor e ficou lá, no mocó. Este cara disse que foi uma carnificina. Os caras do helicóptero praticamente não falavam. Desceram e enfileiraram as pessoas. As muito velhas e as mais doentes, levaram tiro na cabeça. As outras foram vendadas com sacos pretos. Maior gritaria. Então veio pela estrada um caminhão. As pessoas foram colocadas neste caminhão e ele partiu. Daí o helicóptero decolou e sumiu no céu.
-Pô, mas isso não era o resgate, cara?
-Resgate que mata os velhos e os doentes? Tá maluco?
-Se não era o resgate, o que era?
-Eu sei lá. Ninguém sabia, mas o que passamos a ouvir pelo radio foi isso. Que chegava um caminhão, descia dele um monte de gente com roupa branca e levavam embora as pessoas.
Aí, teve um dia que levaram o cara do radio. Ou ele morreu por algum outro motivo, pois o radio silenciou pra sempre.
O mercado já não era mais seguro. O Reverendo e os homens resolveram que tínhamos que mudar. O mercado era vulnerável a ataques. Então começou a operação de trazer as pessoas pra cá. Eu vim no primeiro caminhão, junto com os homens, para arrumar tudo. Preparar o novo acampamento. Antes aqui era um prédio de uma seguradora…
-E você disse que eram mais de cem?
-Isso.
-Mas eu não vi tanta gente.
-Calma. Aí que está. Depois do nosso, era pra vir os outros caminhões, mas só chegou um. Os outros… Sumiram.
-Que loucura.
-Sim. Loucura mesmo, meu chapa. A gente deu sumiço no caminhão, para não dar na pinta onde que a gente estava. Ficamos um tempão acampados num regime de guerra aqui, cara. Sem comida, sem banho, sem nada. Pessoas perderam parentes, filhos. Foi uma merda. A maior depressão. O medo era dos mortos entrarem, e dos homens de branco invadirem. O medo aqui é um estado permanente. Por conta disso, só ficou vivo quem obedece cegamente o que o Reverendo mandar. Se alguém desobedecer, morre.
-Mas e o montão de comida lá do outro prédio?
-Com o tempo, nós começamos a organizar expedições aos mercados próximos. A gente vai, pega tudo que dá pra trazer e volta. Fazemos como as formigas. Só sai gente daqui pra isso. Pra absolutamente nada mais.
-E o helicóptero?
-O Águia de Fogo era um helicóptero usado por um empresário. Hoje é a forma que nós temos de ir rapidamente a áreas distantes da cidade. Mas ele está com umas avarias, e não tem um alcance longo. Além disso, falta combustível. Não dá pra abusar e nem correr o risco de perder a aeronave.
-Quer dizer que o Reverendo manda, vocês obedecem?
-Quem não concorda é livre para partir. Mas nós sabemos que eles matam as pessoas.
-E vocês sabem e não fazem nada? Isso é covardia!
-Errado! Isso é sobrevivência, amigo.
-Mas é injusto.
-Pense neste prédio como a Ilha do Fidel. É uma merda, mas é melhor do que estar morto. E lá fora as coisas não são melhores. Pelo menos aqui temos comida, remédios e… Algum conforto.
-Sim. Eu entendo seu ponto de vista. Mas vocês não tem liberdade.
-De que vale a liberdade numa situação dessa, brother? Olha lá fora! O que você vai ver? Gente morta querendo te comer. As pessoas aqui entenderam qual é a regra do jogo. E jogam nessa regra e é por isso que estamos vivos. O Reverendo é um cara legal. Super gente boa, cara. Não fique com esta impressão ruim! – O jovem Wilson fez sinal mostrando que estava falando para alguém que ouvia do lado de fora da barraca. David entendeu.
-Ok, Wilson. Entendi o que quer dizer. Mas eu não gostei de apanhar, cara.
-Fica frio. Relaxa, David. Foi um acidente, cara. Os rapazes lá pegaram pesado, eu sei. Mas tenta entender a situação. Eles estavam pensando que você era um dos “brancos”.
-… – David ficou em silêncio por alguns instantes e parecia que o assunto entre os dois tinha, enfim, acabado.
-Ok. Vamos mudar de assunto. – Disse Wilson.
-Vamos falar da Alice.
-O que que tem a Alice?
-Quais as minhas chances com ela, cara?
-Hummmm. Zero. Não, não. Menos um!
-Por que?
-Cara ela está interessada em você, mas tem um pequeno problema…
-O que cara? Ela é casada?
-Não… Ainda não.
-Ah, puta que pariu! Tá de sacanagem! Vai dizer que até nisso o filho da…
-Pois é, cara. -Wilson sussurrou. – O Reverendo quer juntar ela com o Sam, meu.
-Que merda! -Gemeu David.
-Olha, eu vou ter que rapar fora daqui. Falta menos de dez minutos pra trocar o guarda aí na porta, e esse cara aí tava me devendo um favor. Só consegui entrar por isso.
-Calma aí. Rapidinho… Por que você veio aqui?
-Ela pediu pra ver como você estava, cara. Eu sou muito amigo dela. Eu te falei, né?
-Tô ligado. Mas e o lance com o pai dela? Cadê ela?
-Ela tá presa, véio. Aqui em cima.
-Onde?
-O andar de cima. – Sussurrou Wilson.
-Presa?
-É, porra. Tipo você.
-Mas por que?
-Desobedeceu o pai. Bom… Agora é sério. Tenho que ir, senão eu me estrepo também.
Os dois se despediram com um forte aperto de mão. O jovem fechou a barraca e saiu. David escutou os passos ecoando na enorme sala, até que a porta se abriu e depois fechou com uma batida. O som das correntes passando pela tranca foram os últimos sons que David Carlyle ouviu antes do silêncio sepulcral invadir aquela sala.

Agora ele estava ali, sozinho, com um vidro de soro gotejando num tubinho e milhares de duvidas e pensamentos confusos. Tentou dormir, mas era impossível. A imagem daquela mulher não lhe saía da cabeça.
David Carlyle ficou a pensar no que diria quando voltasse a encontrar a moça. Pensou em tudo que Wilson havia contado a ele, e finalmente pegou no sono.
Uma explosão fez com que ele saltasse da cama sobressaltado. A lamparina havia se apagado e tudo estava imerso numa completa escuridão.
David ficou atônito, apenas escutando. Decidiu que aquele não era o melhor momento de ficar na barraca. Decidiu sair. Levantou-se do colchonete e retirou a agulha de soro da veia.
Abriu a barraca e não conseguiu ver nada do lado de fora. Tudo estava escuro.
Uma paulada na porta. O coração disparado. David ouviu correntes caindo no chão.
Nessa hora surgiu uma fraca luz sob a porta, desenhando gradualmente um quadrado na escuridão da sala. A luz entrava pelas frestas da porta e quando ela finalmente abriu num estampido seco, ele sentiu um horrível calafrio ao dar de cara com alguém parecendo um astronauta, vestindo um traje todo branco, empunhando uma arma. David ficou de pé, levantou os braços e perguntou quem eram eles. A figura estava estática. Pegou a arma e apontou na direção dele. A figura não demonstrou nenhuma emoção. Apenas colocou o dedo no gatilho e… Pressionou.

Quando David Carlyle abriu os olhos, estava num outro lugar. Sua cabeça estava zonza e ele não conseguiu ficar em pé. Tudo parecia rodar.
Notou que estava vestindo um macacão branco. E vestia sapatilhas brancas de feltro. Não tinha nada escrito na roupa.
Levou a mão até o peito, abriu o macacão e viu que ali estava a marca do dardo tranqüilizante que o nocauteou.
Era um quarto branco, sem janelas. Havia apenas aquela cama junto a parede e bem à frente dela, a porta.
Levou um tempo para que ele conseguisse finalmente firmar o corpo sem cair. David andou até a porta, mas ela estava trancada.
Ele olhou ao redor em busca de uma saída daquele lugar. Notou que aquele ambiente era iluminado por energia elétrica. David não via a eletricidade operando desde que as coisas ainda estavam no lugar.

A única luz que iluminava o quarto vinha de uma luminária na parede.
O lugar parecia uma cadeia. O quarto era bem pequeno, talvez três por três metros.
David sentou-se na cama.
Agora ele estava lembrando o que havia acontecido. A última coisa que se lembrava era daquele astronauta branco surgindo com uma arma e atirando nele.
Sua mente era marcada por pensamentos angustiantes. Teria ele sido o único? Seriam os tais homens brancos? Teriam matado alguém?

David Carlyle estava em silêncio, tentando escutar qualquer coisa ao redor, mas não havia nenhum som.
Então bateram na porta. David retesou seus músculos a espera que algo acontecesse. Ele escutou o barulho de uma chave penetrando na fechadura e a maçaneta lentamente girou.

A porta se abriu e diante dele estava um homem. Ele vestia um terno antiquado, com colete e gravata de listas. Sobre a roupa, um jaleco branco longo, que ia quase na barra da calça. O homem usava uma barba cuidadosamente aparada e tinha um tufo de cabelos brancos surgindo da frente da cabeça. O resto dos cabelos eram pretos como a asa da graúna. Ele não trazia nem prancheta, nem arma, nem nada que desse para perceber. Estava com uma mão no bolso do jaleco e a outra na maçaneta. E não disse nada. Só ficou ali, olhando para David, talvez esperando alguma reação. O homem de terno tinha olhos negros, penetrantes e assustadores.

David, por sua vez estava meio perplexo, e talvez por isso ficou parado, sem ação, olhando para aquele homem que não fazia muito sentido ali.
Os dois ficaram assim, um olhando para o outro em completo silêncio.

Foi David que decidiu romper o silêncio.

-Onde eu estou?

Mas o homem não respondeu. E por isso, David tentou novamente.

-Quem é você? Que lugar é esse? – Perguntou, levantando-se da cama.

O misterioso homem de terno agora olhava pra ele com uma expressão de surpresa. Então, ele finalmente falou.

-Estranho. Não era pra você estar acordado. Muito menos em pé…
-Minha cabeça está doendo.
-Sente-se tonto?
-Sim. Mas quem é você? Que lugar é esse?
-Vamos combinar uma coisa? Eu faço as perguntas por aqui.
-…Tá.
-Seu nome?
-David Carlyle.
-Idade?
-Trinta e um.
-Profissão?
-Nad…Quer dizer… Sou vocalista de uma banda de rock.
-Qual a última coisa que você comeu?
-… Eu, eu não sei. Acho que… Estava tomando soro.
-Você estava doente? – O homem de terno tinha um olhar inquisidor. David sentiu que aquela pergunta faria diferença no destino dele.
-Não. Eu nunca fico doente.
-E porque estava tomando soro?
-Fui torturado por uns caras. Eles me bateram muito, fiquei fora do ar um tempo, o medico do acampamento me colocou no soro.
-Você só tomou soro ou algum remédio?
-Não sei. Eu estava fora do ar como eu disse, talvez tenham me dado alguma coisa.
-Por que está com o corte na boca? E o olho roxo?
-Foram eles. Os caras que me bateram. Por isso que eu estava preso.
-… – O homem de terno ficou quieto por alguns segundos. E então perguntou:
-Havia um medico naquele grupo?
-Sim senhor.
-E quem era?
-Um velho… De óculos. O nome dele é Clarck. Ele é Geriatra.
-Ah, sim. Sei quem é. Por enquanto é só. Eu já volto. Não fique em pé. – Disse o misterioso homem de terno, batendo a porta e trancando a mesma em seguida.

David estava novamente só no quarto branco, sentado na cama, sem entender nada do que acontecia ao seu redor.
Ficou pensando no homem do jaleco e no jeito estranho, excessivamente formal de falar que ele tinha. Parecia um doido. Ou um robô. Ou melhor, um robô doido.
Quando a sociedade acabou, o que restou foi uma latrina carcomida e decadente, repleta de mortos e malucos. David refletiu sobre uma coisa que até então não havia parado para pensar: Quanto tempo ele realmente havia ficado naquele armário?
O mundo não chega no estado em que chegou em um ou dois dias. Nem em semanas. Talvez tivesse passado meses fora do ar na boca de fumo da obra. Mas como uma pessoa consegue se manter viva tanto tempo?
David era um buraco negro infinito de indagações. Buscava dentro de si respostas para seus problemas, mas não as encontrava. Quando isso acontecia ele se sentia mal, irritado e aborrecido.
David refletiu sobre sua situação, e percebeu que estava bem melhor quando estava por conta própria. Só havia entrado em roubadas ao buscar pelos semelhantes. Decidiu que quando saísse dali, ele iria dar um jeito de fugir para o norte. Ele sabia que no Canadá ou no Alasca havia poucos habitantes. Talvez ainda houvesse um ou outro povoado distante em que pudesse viver o resto dos seus dias sem incomodar-se com defuntos canibais. Aquela era certamente a coisa mais certa a se fazer.

A porta do quarto tornou a abrir e dessa vez surgiu o homem do terno, e ele estava acompanhado do Clarck. Que também estava usando um jaleco.

-Clarck! – Disse David levantando-se para cumprimentar o amigo.
-Olá David. – Disse Clarck.

David percebeu na hora que Clarck estava diferente. Não parecia o mesmo. O homem de terno estava ao lado dele, apenas observando.

-Onde estamos? – Perguntou David ao Clarck. O homem de terno olhou para Clarck de um jeito estranho.
-Não interessa, David. – Disse Clarck.
-E os outros? E os sobreviventes? Onde estão?
-Estão mortos, David.
-O que? – Assustou-se David.
-Mortos. – Disse Clarck, olhando para o chão enquanto movia a cabeça negativamente. David caiu sentado na cama. Seu mundo desabava. Ele teve uma sensação de um frio no peito, a sensação era a de perder alguém que ama muito.
-Mas o que aconteceu? Que porra é essa? Alice está morta?  (continua...)

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