
Deus ou não, o fato é que Monan criou os céus e a Terra, e também os animais. Ele viveu entre os homens, num clima de cordialidade e harmonia, até o dia em que eles deixaram de ser justos e bons. Então, Monan investiu-se de um furor divino e mandou um dilúvio de fogo sobre a Terra. Até ali a Terra tinha sido um lugar plano. Depois do fogo, a superfície do planeta tornou-se enrugada como um papel queimado, cheia de saliências e sulcos que os homens, mais adiante, chamariam de montanhas e abismos. Desse apocalipse indígena sobreviveu um único homem, Irin-magé, que foi morar no céu. Ali, em vez de conformar-se com o papel de favorito dos céus, ele preferiu converter-se em defensor obstinado da humanidade, conseguindo,após muitas súplicas, amolecer o coração de Monan.
Segundo Irin-magé, a terra não poderia ficar do jeito que estava, arrasada e sem habitantes.
– Está bem, repovoarei aquele lugar amaldiçoado! – disse Monan, afinal.
A história, como vemos, é tão velha quanto o mundo: um ser superior cria uma raça e logo depois a extermina, tomando, porém, o cuidado de poupar um ou mais exemplares dela, a fim de recomeçar tudo outra vez.
E foi exatamente o que aconteceu: Monan mandou um dilúvio à Terra para apagar o fogo (aqui o dilúvio é reparador) e a tornou novamente habitável, autorizando o seu repovoamento.
Irin-magé foi encarregado de repovoar a Terra com o auxílio de uma mulher criada especialmente para isto, e desta união surgiu outro personagem mítico fundamental da mitologia tupinambá: Maire-monan.
Esse Maire-monan tinha poderes semelhantes aos do primeiro Monan, e foi graças a isto que pôde criar uma série de outros seres – os animais –, espalhando-os depois sobre a Terra.
Apesar de ser uma espécie de monge e gostar de viver longe das pessoas, ele estava sempre cercado por uma corte de admiradores e de pedintes. Eletambém tinha o dom de se metamorfosear em criança. Quando o tempo estava muito seco e as colheitas tornavam-se escassas, bastava dar umas palmadas na criança-mágica e a chuva voltava a descer copiosamente dos céus. Além disso, Maire-monan fez muitas outras coisas úteis para a humanidade, ensinando-lhe o plantio da mandioca e de outros alimentos, além de autorizar o uso do fogo, que até então estava oculto nas espáduas da preguiça. Um dia, porém, a humanidade começou a murmurar.
– Este Maire-monan é um feiticeiro! – dizia o cochicho intenso das ocas. – Assim como criou vegetais e animais, esse bruxo há de criar monstros e Tupã sabe o que mais!
Então, certo dia, os homens decidiram aprontar uma armadilha para esse novo semideus. Maire-monan foi convidado para uma festa, na qual lhe foram feitos três desafios.
– Bela maneira de um anfitrião receber um convidado! – disse Mairemonan, desconfiado.
– É simples, na verdade – disse o chefe dos conspiradores. – Você só terá de transpor, sem queimar-se, estas três fogueiras. Para um ser como você, isso deve ser muito fácil!
Instigado pelos desafiantes, e talvez um pouco por sua própria vaidade, Maire-monan acabou aceitando o desafio.
– Muito bem, vamos a isso! – disse ele, querendo pôr logo um fim à comédia.
Maire-monan passou incólume pela primeira fogueira, mas na segunda a coisa foi diferente: tão logo pisou nela, grandes labaredas o envolveram. Diante dos olhos de todos os índios, Maire-monan foi consumido pelas chamas, e sua cabeça explodiu. Os estilhaços do seu cérebro subiram aos céus, dando origem aos raios e aos trovões que são o principal atributo de Tupã, o deus tonante dos tupinambás que os jesuítas, ao chegarem ao Brasil, converteram por conta própria no Deus das sagradas escrituras.
Desses raios e trovões originou-se um segundo dilúvio, desta vez arrasador. No fim de tudo, porém, as nuvens se desfizeram e por detrás delas surgiu, brilhando, uma estrela resplandecente, que era tudo quanto restara do corpo de Maire-monan, ascendido aos céus. Depois que o mundo se recompôs de mais um cataclismo, o tempo passou e vieram à Terra dois descendentes de Maire-monan: eles eram filhos de um certo Sommay, e se chamavam Tamendonare e Ariconte.
Como normalmente acontece nas lendas e na vida real, a rivalidade cedo se estabeleceu entre os dois irmãos, e não tardou para que a fogueira da discórdiaacirrasse os ânimos na tribo onde viviam.
Tamendonare era bonzinho e pacífico, pai de família exemplar, enquanto Ariconte era amante da guerra e tinha o coração cheio de inveja. Seu sonho era reduzir todos os índios, inclusive seu irmão, à condição de escravos.
Depois de diversos incidentes, aconteceu um dia de Ariconte invadir a choça de seu irmão e lançar sobre o chão um troféu de guerra. Tamendonare podia ser bom, mas sua bondade não ia ao extremo de suportar uma desfeita dessas. Erguendo-se, o irmão afrontado golpeou o chão com o pé e logo começou a brotar da rachadura um fino veio de água.
Ao ver aquela risquinha inofensiva de água brotar do solo, Ariconte pôs-se a rir debochadamente. Acontece que a risquinha rapidamente converteu-se num jorro d’água, e num instante o chão sob os pés dos dois, bem como os de toda a tribo, rachou-se como a casca de um ovo, deixando subir à tona um verdadeiro mar impetuoso.
Aterrorizado, o irmão perverso correu com sua esposa até um jenipapeiro, e ambos começaram a escalá-lo como dois macacos. Tamendonare fez o mesmo e, depois de tomar a esposa pela mão, subiu com ela numa pindoba(uma espécie de coqueiro). E assim permaneceram os dois casais, cada qual trepado no topo da sua árvore, enquanto as águas cobriam pela terceira vez o mundo – ou, pelo menos,a aldeia deles.
Quando as águas baixaram, os dois casais desceram à Terra e repovoaramoutra vez o mundo. De Tamendonare se originou a tribo dos tupinambás, e de Ariconte brotaram os Temininó.
(LIVRO AS 10 Melhores Lendas do Folclore Brasileiro)
Nenhum comentário:
Postar um comentário