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quarta-feira, 5 de julho de 2017

Menu Contos: A Dama Inevitável

A DAMA INEVITÁVEL 

Autor: Leandro Hardark 



Quando me lembro daquele elfo, não consigo esquecer seu olhar. Uma pena que eu o tenha usurpado. Gal’Lahad, o invencível general dos céus. Assim que o vi pela primeira vez, soube que daria um grande trabalho fazê-lo acordar.

A névoa cercava o bosque em um abraço firme, recusando-se a dispersar mesmo sob a ordem do sol, já alto. Das árvores velhas, poucas ainda estavam de pé após o grande incêndio. A cada sopro do leste, as cinzas agitavam-se, erguendo-se em ondas e redemoinhos, espalhando-se. Ossos e metal descansavam ao chão, jogados por onde a vista alcançasse. Não havia inseto ou pássaro, nem mesmo folhas para cantar quando atiçadas pelo vento. Apenas morte.

De armadura suja e coberta de sangue, o general dos céus caminhava com dificuldades. Gritava em seu idioma, chamando por esposa e filho. Procurava em cada pilha de cinzas, estudando vigorosamente cada crânio encontrado, na esperança de ver nos ossos, a imagem de um familiar.

Por inúmeros dias eu fui ignorado. Minha mão fria em seu ombro, quando ele chorava, mergulhado em sua frustração, não o consolava. Encarava-o persistente, quando o general entrava em estado catatônico e fitava o vazio, mas meu esforço era em vão.

Sua armada havia sido massacrada. Suas casas nas árvores, queimadas até que nada restasse. A vida de seu povo havia sido ceifada e sua história, apagada da floresta em que viviam. Tudo fazia crer que a sede de vingança era o alimento de seu martírio, mas era a perda de seu filho que criara a prisão em que vivia.

Muito tempo passou e Gal’Lahad ainda alimentava-se das cinzas de seu passado. Em uma maldição, imposta por ele próprio, o local não se alterava e sua mente não progredia.

Quando hesitei, imaginando que não conseguiria resgatá-lo, a benção lhe foi concedida. O vento soprou mais uma vez, criando os redemoinhos e ondas de cinzas. Pude então sentir a presença de minha senhora e a procurei logo que me pus de joelhos.

Ela estava ao lado do general. Usava sua forma mais bela: Uma mulher pálida, de beleza embriagante, com longos cabelos negros como a mais profunda caverna. Trajava um vestido preto, que realçava seu corpo esbelto. Gal ́Lahad não pôde ignorá-la.

– Meu filho, bela dama… Eu o procuro há dias. Não encontro ele ou minha esposa… – disse, estudando-a.
Minha senhora segurou-o pelo queixo e o pôs de pé. Seus olhos escuros o fitaram por um longo momento. Sua expressão permanecia imutável, como se o rosto perfeito fosse uma pintura. Então ela anunciou, sem emoção alguma em suas palavras. Sua voz, porém, fez o general tremer.

– Tua esposa não pertence mais a este mundo, sabes bem disto, pois teus olhos são testemunhas do assassinato que ela sofreu.

Ele desviou o olhar por segundos, hesitante em acreditar, mas logo a fitou novamente, temente que tal beleza se afastasse.

– E… E meu filho? Preciso encontrá-lo, pois ele deve estar com…

– Gal’Lahad… – chamou ela, fazendo-o calar-se. Pude ver os joelhos do elfo tremerem, e acreditei que ele não permaneceria de pé. Ela ordenou: – Diga meu nome!

Ele hesitou. Seu rosto estampou o desespero crescente em sua alma. Suas pernas desistiram de lutar e curvaram-se, levando-o ao chão. Suas mãos apoiaram o corpo curvado. Sua resistência era magnífica, mas era impossível contrariar a vontade de minha dama.

– Amupherus… – a voz fraca ecoou no silêncio mortal, carregada da dor que o elfo aprisionara em seu peito. – Não pode ser… Eu não posso estar morto!

– Tu morreste com honra… – disse ela, imóvel. – Os senhores de tua alma aguardam ansiosos por teu retorno.

– Morto… – repetiu ele, levando a mão ao peito, onde sangrava constantemente. Lembrou-se do fantasma de um cavaleiro em armadura vermelha. Ele o havia atravessado com sua espada enferrujada. – Eu fui derrotado, e meu povo morto.

– Sim. – confirmou ela, ainda sem emoção.

– Meu filho?

– Ele não é mais tua responsabilidade.

– Ele está morto?

– Já disse! Ele não é mais tua responsabilidade.

– Eu quero vê-lo!

– Impossível, pois teu mundo é dos mortos e o dele é o dos vivos.

– Ele vive! – Espantou-se o elfo, sem esconder suas lágrimas. – Meu filho vive!

Silêncio. Minha dama, enfim mudou sua expressão. Seus olhos o fitavam daquele modo raro, que eu só vira uma vez na vida, quando me tornei seu escravo.

Revigorado, o general levantou-se e recomeçou sua procura, ignorando-a.

– Teu filho não está aqui. Ele foi encontrado por um humano e levado para o sul. – anunciou ela.

– Há quanto tempo partiram?

– Trinta anos.

O elfo paralisou. Havia passado tanto tempo assim?

– Não há o que fazer. Venha comigo.

– Não!!! – Explodiu ele. – Como ousa afastar meu primogênito de mim?

Ele a procurou, temendo uma represália, mas ela havia partido. Seus olhos encontraram os meus. Enfim, ele pôde me ver.
– Não irá me impedir! – repetiu, apontando ameaçadoramente. Depois correu.

O cenário a sua volta alterou-se finalmente. A floresta ganhou verde e os vestígios do grande incêndio desapareceram na mata densa. Ele locomovia-se com dificuldade, abrindo caminho com as mãos.

– Não há saída desta floresta… – avisei. Seus olhos me fitaram por alguns segundos, mas ele retomou sua caminhada obsessiva.

– Vocês… – sua testa contraiu enquanto ele falava. Eu podia sentir sua frustração transformando-se em ódio. –
Vocês me aprisionaram!

– Esta prisão foi criada por você… – suspirei. – Talvez não entenda agora, mas explicar vai ajudá-lo no futuro.

Quando sua alma deixou seu corpo, você partiu de seu mundo, indo a outro lugar. Porém, você criou uma ilusão em torno de si e agora está preso entre os dois mundos.

– Como eu volto para Melkearis? Como chego até meu filho?

– Me responda: Por que não pode deixá-lo nas mãos dos deuses em que confiava? Por que não segue adiante?

– Eu vi nos olhos da dama da morte… Todos estão mortos. Todos de Kun ́drarin pereceram. Menos meu filho.

– Minha senhora já lhe disse que ele foi encontrado por um humano.

– Um humano não pode cuidar de um elfo! Não há como saber se ele ficará bem! Ninguém mais sabe que ele está vivo! Eu preciso vê-lo, preciso cuidar dele. – respondeu, dando-me as costas mais uma vez.

– Sou Unllar, represento uma porta para os outros reinos. Quando desistir de sua obsessão me chame e eu virei. – despedi-me, mesmo sabendo que ele jamais me chamaria. Pobre espírito, sua mente estava perdida.

Anos passaram-se e muitas foram as almas que guiei. Desde que me tornei um dos poucos sacerdotes de Amupherus, tenho sido um guia para os falecidos. Um preço justo a se pagar pelos meus caprichos de quando era vivo.

Enfim, o dia derradeiro chegou. Eu meditava dentro do Grande Crânio quando os sons e ventos cessaram, tementes à presença que se aproximava. Abri meus olhos e ela estava lá. Não a bela dama, visão que os elfos têm da morte, mas sim sua forma mais mentalizada e temida: Um esqueleto sob um capuz e mantos negros, esfarrapados. O crânio de órbitas vazias me fitava, sereno. Curvei minha cabeça em gratidão por sua presença.

– Faça a proposta ao general elfo… – disse com sua voz suave.

Então eu parti. Eu suspeitava que ela o faria, no momento em que vi sua expressão mudar, no dia em que ela própria confrontou Gal’Lahad.

O elfo estava deitado no chão. O céu tornara-se escuro e nublado, dando um tom azulado ao local. As cinzas haviam retornado e cobriam parte de seu corpo. Seus olhos, catatônicos, sequer moveram-se, apesar dele notar minha presença.

– Eu não posso simplesmente morrer… – balbuciava ele. – deixar de existir… Meu filho precisa de mim…

– Gal’Lahad… – inspirei profundamente. – Eu já estive no ciclo sem fim que você se encontra. Eu era um guerreiro bárbaro.

O Campeão de minha tribo, mas fui morto em combate e julguei que meu povo deixaria de existir se eu não retornasse.
Ele me ignorava. Caminhei até seu lado e abaixei-me para fitar seus olhos.

– Então, depois de muito tempo, Amupherus me fez uma oferta. Ela permitiu que eu visse minha tribo novamente.
Silêncio. Seus olhos estavam fixos no vazio.

– A Senhora dos Mortos faz a mesma oferta a você, Gal’Lahad.

Enfim, aqueles olhos verdes moveram-se. Suas mãos deixaram as cinzas que as cobriam e seguraram meu rosto pálido.

– Eu posso ver meu filho?

– Se aceitar, sim. Faz cinqüenta anos desde que você morreu. As coisas mudaram e ele cresceu.

– Pelos deuses… Cinqüenta anos? Ele já é quase um homem…

– Tal favor tem um custo. Amupherus cobrará de você o mesmo que cobrou de mim.

– Não me importa! Eu aceito!

– Escute, elfo! – ergui a voz. Queria que ele prestasse atenção às minhas palavras. Somente quando tive certeza que me ouviria, continuei: – Você será obrigado a servi-la por mil e um anos. Ela reconstruirá seu corpo e sua alma o habitará. Porém, seu coração não baterá novamente, não haverá fome ou sede. Sua obrigação será unicamente guiar almas e fazer a vontade da Dama dos Mortos.

– Um morto-vivo? Eu me tornarei um morto-vivo? – O horror tomou conta de seu rosto por alguns segundos. Ele havia entendido. Mas logo decidiu-se. Mais rápido do que eu imaginava. E a mim, restara apenas levá-lo a seu filho.
O jovem elfo estava preso. Suas orelhas haviam sido mutiladas. Apesar de crescido, Gal’Lahad o reconheceu. Meu peito sem vida apertou-se ao vê-lo correr para abraçar sua criança, passando seus braços por dentro do garoto, sem poder tocá-lo.

– Ele está preso? – perguntou sem esperar resposta. Mas calou-se ao perceber que dois homens aproximavam-se, conversando.

– Tem certeza, capitão Arturius? – dizia um guarda. – Este garoto roubou e matou. As masmorras deveriam ser sua morada pelas próximas décadas.

O segundo homem demorou a responder.

– Ele não é culpado por suas ações. – afirmou convicto. – Foi apenas manipulado por aquela guilda. Eu irei corrigir o mal que foi feito a ele.

Os homens pararam à frente da cela em que estávamos. Um deles trazia uma insígnia no braço e o símbolo de Rauny, a deusa da Justiça, no pescoço.

– Veja, Gal ́Lahad, ele é um Campeão Sagrado. Um servo de Rauny. – Comentei.

– Eu conheço o símbolo… – respondeu o elfo, encarando o capitão humano. De súbito levantou-se e pediu: – Servo de Rauny, cuide de meu filho, pelos elementos e por minha alma imortal, eu imploro.

– Ele não pode ver ou ouvi-lo. – expliquei.

– Abra a cela. – pediu o capitão humano. O guarda obedeceu. Apenas Arturius entrou, ajoelhando-se na frente do jovem. – Qual seu nome, garoto?

– Gal’Had. – respondeu o pai.

– Gawyn… – afirmou o jovem.

– Esse era o nome do líder da guilda que o criou… – disse o capitão, pensativo. – Você quer seguir o mesmo caminho que ele?

– Não… – explicou o jovem. – Eu apenas não quero esquecer o que ele fez.

– E por que não?

– Eu quero me lembrar somente… Não desejo esquecer o que passei… – respondeu com olhar distante.

– Escute garoto, eu vim te oferecer um caminho. Você agora está sob minha tutela. Viverá em minha casa, junto de minha família e filhos. Não será um servo, mas sim um convidado.

– Qual o preço? – a aparência jovem enganava. O garoto já havia adquirido a astúcia humana.

– Que você viva conforme as leis e se torne um homem de ideais nobres…

Ajoelhei-me. A sala escurecia lentamente, os homens tornaram-se vultos. Gal’Lahad limitou-se a acariciar o rosto de sua prole.

A escuridão nos cercou e a Dama dos Mortos surgiu dela em sua bela forma feminina. Os olhos escuros fitavam-no com carinho, o mesmo olhar dirigido a mim, quando tornei-me o que sou.

– Não estás satisfeito, mas é o máximo que terás. Teu filho sobreviveu ao mundo, contrariando tuas apostas. Agora ele encontra apoio nos humanos e não há nada que possas fazer. – anunciou ela.

– Em mil e um anos, poderei vê-lo novamente? Poderei saber como ele está?

– Tu me serve agora. Renasça e inicia tua dívida. – ela tocou-o na testa e beijou o topo de sua cabeça, fazendo-o desaparecer na escuridão. Sua pergunta jamais seria respondida.

Hoje, cruzo com ele nos salões do Grande Crânio. Mal conversamos, pois nossos serviços não param. Somos a luz que guia os mortos. Somos servos da Dama Inevitável. Ficamos presos nesse mundo por nossas obsessões e, ironicamente, lutamos para evitar que outros cometam nosso erro.

Eu sou Unllar, sacerdote de Amupherus há 823 anos, e este é meu relato. Que, ao chegar sua hora, você tenha a sorte que não tive, e se lembre desta história. Assim poderá seguir-me e encontrará seu merecido descanso.



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