Autor: Thiago Shirken
É comum em jogos mais tradicionais, principalmente os que usam sistemas de níveis, que os personagens jogadores comecem muito frágeis. Isso tem diminuído muito com o tempo – a época do D4 como dado de vida já ficou para trás (a não ser que você jogue Old Dragon).
Embora faça todo sentido que o game design torne os personagens mais robustos para que eles de fato cheguem aos níveis mais altos, a galera da OSR tem razão quando fala que aquela fragilidade fomentava os jogadores a pensarem mais e desenvolverem “player skill” – uma forma de reconhecer o que é perigoso no mundo de jogo e reagir de acordo, conhecendo a sua própria mortalidade, para chegar a seus objetivos. É uma mistura de gerenciamento de risco com conhecimento de probabilidades com familiaridade com as regras do jogo e com o cenário.
O problema é que se seus jogadores são como eu, eles vão achar ser frágil um porre. Eu já sou frágil na vida real – sou baixinho e tenho asma. Até quando praticava esportes não podia ficar em campo muito tempo porque meus pulmões simplesmente não aguentavam. Eu não quero ser tão cauteloso assim nos jogos, quero partir pra frente e agir de forma impetuosa.
Guardadas as devidas proporções, eu era tipo esse cara
Você pode achar que a solução é só jogar outras coisas. Isso é um bom conselho, na verdade. É sempre melhor jogar coisas que se alinhem com o que você já quer fazer em vez de tentar torcer o sistema e o cenário até ficarem do jeito que você quer. Acontece que nem sempre é possível jogar o que você quer. Pior, muitas vezes não é possível narrar exatamente o que você quer. RPG é, afinal de contas, uma atividade em grupo. Não são só os seus desejos e interesses que importam, mas também os desejos e interesses de todo o seu grupo. Você pode querer a beleza poética do fatalismo de Tenra Bansho Zero, mas seu grupo pode querer a fantasia feijão com arroz do Pathfinder. Uma coisa não é melhor que a outra. Você precisa entrar em um acordo com a galera, encontrar um meio termo.
A principal dificuldade desses jogos mais tradicionais nos níveis baixos é essa questão da fragilidade. Isso pode ser chato para os jogadores, mas é muito mais chato para o narrador. Depois de narrar uma ou duas aventuras para personagens de nível baixo, você já usou praticamente todas as variedades de monstros que ainda dão uma chance de vitória para os jogadores. Esses oponentes fracos são não só muito parecidos entre si como costumam ser muito parecidos com os jogadores. É tudo muito igual. Não tem muita variedade mecânica, que é justamente o principal atrativo desses jogos de fantasia mais feijão com arroz. “Goblins saltam das sombras e atacam.” Como fugir dessa mesmice?
USE O AMBIENTE
Uma alternativa é alterar o local onde as lutas acontecem. Quartos apertados de dungeons ou grandes campos abertos são mais fáceis de gerenciar, mas também são extremamente chatos. Você pode aproveitar condições de luz diferentes, clima ou terreno para tornar um encontro genérico bem mais memorável. Hobgoblins que emboscam os personagens dos jogadores entrincheirados de cima de uma ladeira são um desafio muito maior (e muito mais interessante) que simples bucha de canhão sem mente. Como os personagens dos jogadores são de nível baixo, porém, é sempre importante evitar tornar as coisas muito letais. Se você teria normalmente um hobgoblin contra cada jogador, por exemplo, dessa vez coloque um para cada dois jogadores. Assim você mantém a inovação mas não tem o risco de TPK (ou pelo menos diminui o risco de TPK; em nível baixo, isso é sempre uma possibilidade).
Algumas ideias rápidas: um duelo de espada em uma precária ponte de corda, um combate com bandidos de estrada sob chuva pesada, um combate em uma área com um gêiser de água quente que se ativa a cada 1d6 turnos, uma emboscada na neve, uma briga sem armas em uma fábrica decrépita (com correntes para se pendurar e poços de ácido onde jogar inimigos), um tiroteio em uma sala de espelhos com bandidos uniformizados.
Essas dicas sobre alterar o local dos encontros de combate são especialmente interessantes em jogos que usam poucas diferenças mecânicas entre os personagens dos jogadores e seus antagonistas, como Fate ou 3D&T. Nos jogos mais narrativistas é ainda mais fácil lidar com essas características, já que se tratariam de aspectos que poderiam ser invocados no Fate ou distinctions no Cortex. Saber tornar cenas mais interessantes nesses jogos é só uma questão de saber criar aspectos/distinctions legais, mas esse é um assunto que vamos abordar outro dia.
PEQUE LEVE
Esse é um conselho esquisito já que ele vai na contramão de quase tudo que a gente entende sobre construção de encontros. Como assim, “pegar leve”? Desafio serve para motivar os jogadores, torna a situação no jogo mais interessante e gera drama e tensão. Como um combate propositalmente fácil pode ser interessante?
Combates fáceis permitem que os jogadores sintam que seus personagens são poderosos e habilidosos. Funciona especialmente bem se os jogadores acabaram de passar de nível, mas ainda são de nível baixo. Você pode inclusive repetir um encontro que tenha sido difícil anteriormente. Faça ele praticamente igual, para ilustrar o quanto os personagens melhoraram. Essa é uma técnica usada com muita frequência em várias mídias, especialmente no cinema de Hollywood. É como a montagem de treinamento do Rocky – primeiro ele quase morre subindo as escadas, mas quando ele consegue subir as escadas correndo é irado.
CARACTERIZE A OPOSIÇÃO
Se você não quer arriscar tornar o encontro muito fácil nem muito difícil, você pode fazer tudo correr do jeito tradicional, mas parar de tratar os monstros só como monstros e passar a tratar como personagens. O primeiro passo é não se referir a eles por números – é um jeito rápido e prático, mas nada torna uma criatura mais impessoal. Dê características físicas distintas que diferenciem um monstro do outro. Não chame os guardas do armazém de guarda 1, 2, 3 e 4. Em vez disso, um dos guardas é baixo e barrigudo, mas é o único com uma pistola. Outra tem uma cicatriz enorme atravessando o rosto. Um deles está com a camisa aberta, mostrando um abdômen sarado. A última está impecavelmente maquiada e assume uma postura de artes marciais em vez de sacar um porrete. Assim você pode dizer que o guarda de camisa aberta foi derrotado, ou que o guarda barrigudo e a guarda com a cicatriz começaram a dar paulada juntos no mesmo personagem jogador (coitado).
Você provavelmente não vai fazer isso em todos os seus encontros. Talvez você nem deva fazer isso em todos os seus encontros. Esse tipo de coisa só é marcante e memorável em contraste. Se você começa a descrever sempre a roupa de todos os capangas do chefão do crime, suas ideias vão começar a soar repetitivas e os jogadores vão tratar da mesma forma que os números. Ou seja, para que os seus encontros tenham sabor, você ainda deve usar encontros sem sal de vez em quando. Encontros aleatórios são perfeitos pra isso. Só deixe rolar.
Esse método de dar características mais interessantes para monstros rasos é o que a Paizo fez com seus goblins, usando um redesign do Wayne Reynolds e inventando todo um lore bacana. Os goblins da Paizo não gostam de cavalos nem de cachorros, gostam do gosto da carne de bebês humanoides, cantam músicas assustadores sobre seus feitos mesquinhos e adoram tacar fogo nas coisas. É bem melhor do que “verde e covarde”, né? Na verdade, toda a aventura Nóis é Goblin é uma boa coleção de encontros interessantes com monstros pouco perigosos.
NÃO PARE SÓ NOS MONSTROS !
Esse método não precisa nem ser restrito à caracterização de monstros e antagonistas. Aliados ou personagens secundários ficam mais legal com uma ou outra característica totalmente distinta da função principal deles na história. É assim com praticamente todos os personagens de One Piece, por exemplo; o meu favorito é o Dolton, um homem-touro que é capitão da guarda de um reino e também um tremendo fofoqueiro. Só cuidado para não exagerar, já que os jogadores podem acabar se cansando.
As alterações também podem ser só na aparência e na descrição de um monstro ou oponente comum. A gente já falou dos goblins da Paizo, mas é o que a Game Freaks está fazendo com as alola forms no novo Pokémon – novas caras para monstros que você já conhece. Alguns dos monstros mais sem graça do jogo ficaram irados nas suas alola forms.
Bem que ele também podia ser assim no Pokémon Go
CONCLUSÃO
Fazer encontros bacanas nos níveis baixos não é fácil, mas quando funciona é uma experiência irada justamente por ser fora da curva. Se os seus jogadores querem de qualquer jeito essa experiência de começar fracos e depois irem se tornando mais fortes, se esforce para acompanhar os seus desejos. Pode ser chato ter que usar os menores brinquedos da caixa, mas lembre-se que você pode usar uma variedade muito maior de brinquedos que os jogadores.
O mais importante é que quando você faz um encontro desses se tornar memorável todo mundo sai ganhando. Não só em termos de XP ou de “player skill”, mas a coisa toda só fica mais divertida. Dá trabalho, mas pode ter certeza que compensa.
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