sábado, 18 de janeiro de 2014

Contos: O Homicídio Perfeito

O Homicídio Perfeito


A deformidade de meu caráter jamais me envergonhou. Espírito astuto e dissimulado, nunca me expunha a quem quer que seja. A minha alma exsudava humores peçonhentos, malgrado imperceptíveis, mas eu bem sabia como, sorrateiramente, inocular o meu veneno. Era eu um predador cauteloso. Como uma serpente astuta e insidiosa, mergulhava e recolhia, num átimo de um único segundo, as presas precisas – profundas e aguçadas –, sem que a vítima o percebesse. Isto mesmo: só ensaiava o meu bote certeiro quando se menos esperava.
Sempre fui assim. As memórias mais distantes e profundas de minha infância conduzem a cenas incrivelmente nítidas em minha mente, que se movimentam com agilidade e perfeição, como se tivessem vida própria. Nelas, eu me ponho a furtar as guloseimas de um colega abastado somente para enfiá-las na mochila de um menino pobretão, com o único escopo de denunciá-lo e vê-lo espancado furiosamente pelo senhor diretor.



É evidente que nunca fui apanhado. Em toda a minha vida, sempre gozei de excelente reputação. A reiterada prática de atos impunes, em vez de me infundir o excesso de segurança que irremediável e ordinariamente conduz à negligência e ao relaxamento, fez-me cada vez mais cauteloso. Eu era um gênio na arte do malefício. Mas creio que foi o excesso de reflexão e cautela – a propensão inata a um risco calculado – a origem de toda a minha desgraça.
Nós, os criminosos inteligentes, temos também as nossas teorias. Sempre cri que o crime perfeito é aquele que não deixa vestígios. Não é exato supor que é perfeito o crime que não permite revelar a autoria. Este é um efeito reflexo, que pressupõe a verdade contida no primeiro postulado. Mas havia os que diziam que perfeito não é o crime em si mesmo realizado, mas algo exterior a ele. Perfeito, segundo alguns, é o crime que não pode ser, física ou legalmente, punido.


Certa feita, apresentaram-me ao novo inquilino do apartamento térreo. Chamava-se Houdry e consta que viera de Poitiers. Dizia-se dele que era um brilhante químico, membro da Academia de Ciências, hoje aposentado e definitivamente abandonado pela família. Mas, a mim, antes me parecia um demônio expulso dos infernos. A repulsa que senti por aquele homem foi imediata. O toque de sua mão pareceu-me tão asqueroso quanto a sensação táctil que se deve experimentar quando se acaricia uma víbora fria e sudorosa. Naquele momento, pude sentir, a subir-me pelo braço, um fluxo regelado e aterrador, como se toda potência malévola, que emanava do indivíduo, me inundasse até a exaustão, e me conduzisse quase à asfixia. Confesso que cheguei a cambalear. Ele me sorriu, exibindo os dentes afiados, os dentes de hiena. Então entendi que encontrara um inimigo à minha altura. Um inimigo traiçoeiro e letal. Imediatamente, pus-me em alerta. E, desde então, fiquei à espreita, esperando o momento adequado de cravar-lhe as minhas presas e inocular-lhe toda a minha irremissível peçonha.
Certo dia – era domingo –, acordei muito cedo para o costumeiro passeio nos Champs-Élysées. Desci as escadas com grande disposição. Sorvi – como sempre – o aroma da rosa branca que mantinha na lapela. E mergulhei no andar térreo com certa displicência, pois sentia o espírito leve como uma pluma. Mesmo assim, não deixei de perceber que o Hiena esquecera a chave do apartamento no lado de fora, negligentemente enfiada na ranhura da fechadura. Não me foi nada difícil, em pouco menos de quinze minutos, obter uma réplica da chave e repor a original onde eu a encontrara. O primeiro passo fora dado. Tudo seria uma questão de tempo e oportunidade. E esta não custou a chegar.


Na mesma semana, talvez na quarta-feira, soube, pela senhoria, que o senhor Houdry fora chamado às pressas a Poitiers para sepultar um parente próximo. Na noite em que o velho Hiena abandonou a toca, entrei sorrateiramente em seu minúsculo apartamento, empregando a chave forjada. Compunha-se de um único cômodo e de um banheiro acanhado. Havia apenas uma janela, guarnecida de uma leve cortina de cetim vermelho, cujas fraldas aveludadas desciam pachorrentamente sobre o espelho da cama. Ao lado ficava uma mesinha-de-cabeceira e, sobre ela, descansava um velho relógio despertador, irremediavelmente quebrado. O antro era escuro. As paredes, as cortinas, o velho baú... tudo. Tudo estava impregnado da hediondez daquele homem. E eu podia sentir que todo o ambiente retinha e exalava as excrescências de um caráter tão deformado quanto o meu!
A luz de minha lanterna percorreu as paredes até se deparar com um baú de madeira anciã, cravejada de botões dourados, onde o velho guardava o vestuário. As roupas cheiravam a naftalina. Exalavam o olor insuportável da velhice e da decrepitude. Examinei as vestimentas com cuidado. Nada havia nelas que despertasse o meu interesse, exceto um cravo ainda fresco, quase orvalhante, que se insinuava a partir do bolso de um paletó antigo, mas muito bem conservado. Um terno que calharia bem ao cadáver de um velho chacal. Levei o cravo ao nariz e sorvi, de chofre, o aroma. Aspirei uma fragrância acre, que me fez recuar imediatamente, com o esgar estampado na face.


Mas a grande surpresa foi encontrar um pequeno refrigerador ao lado da porta do banheiro. Ora, aquilo estava longe de ser usual. Não foi necessário um exame minucioso para que eu encontrasse o que queria: a geladeira estava vazia, exceto por uma caixa de papelão contendo diversas ampolas. Era evidente que o velho padecia de um mal crônico e que o medicamento deveria ser conservado em baixa temperatura. A primeira ideia que me ocorreu foi a de desligar o refrigerador e religá-lo antes do retorno do ancião. Mas abandonei esse plano imediatamente. Era uma concepção pueril, e eu me admoestei energicamente. Como a viagem não deveria ser demorada, talvez não houvesse tempo para que o remédio experimentasse o pretendido efeito deletério. E havia a possibilidade de um retorno precoce. Se o Hiena enxergasse a tomada desconectada, certamente tomaria sérias precauções, comprometendo seriamente o meu intento de matá-lo.
Subi ao meu quarto e retornei com uma seringa na mão. Ao acaso, escolhi uma das ampolas e, perfurando com a agulha a tampinha de borracha, injetei uma solução de cianeto de potássio, que há algum tempo obtivera de um farmacêutico, a quem conduzira à ruína: eu era um mestre na chantagem e na extorsão.


Aquele empreendimento me rendeu um deleite extraordinário. Quando o velho escolheria a ampola fatal? Ninguém sabia. A expectativa me fascinava. E a obra do acaso, de entremeio a uma ação homicida calculada, conduzia-me ao êxtase absoluto. Morrerá hoje? Morrerá amanhã? Deliciosa expectativa era esta. Havia um quê de sensualidade naquilo tudo.
O velho retornou dois dias depois de minha visita sorrateira aos seus aposentos. A partir de então, passei a evitá-lo. Quando casualmente nos encontrávamos, eu o tratava com extrema cortesia. E com atenção devotada, quase subserviente. Não poderia despertar suspeitas, mínimas que fossem.
Duas semanas após a corrupção da ampola, o velho Hiena desceu aos infernos. Exultei, consciente de que havia cometido um crime perfeito. Uma obra-prima no extenso rosário de delitos jamais descobertos.
Compareci ao funeral, respirei com satisfação o aroma dos cravos-de-defunto e protestei por segurar-lhe uma das alças do ataúde, no que fui prontamente atendido por meia dúzia de parentes entediados.
Foi no retorno do sepultamento que apareceram os primeiros sintomas. De meu nariz fluiu um sangue espesso, pegajoso como catarro, em golfadas tão caudalosas quanto perenes. O Hiena não era tão leve quanto eu supunha; assim, atribuí a estranha hemorragia ao inútil esforço que fizera ao sustentar-lhe o caixão de madeira de lei. Mas eu estava completamente equivocado. Quando veio o diagnóstico, eu já definhava:


– Contaminação por metal pesado. Lamento, senhor, mas não há o que a Medicina possa fazer.
Como era ladino o Hiena, a quem imaginei proporcionar um fim rápido e indolor! Como foi sagaz, pondo a chave do apartamento praticamente em minhas mãos, instigando-me à incursão noturna. E como foi arguto ao simular uma viagem a Poitiers. Ele me atraiu à ratoeira, depois de examinar atentamente os meus hábitos. Não foi à toa que o velho deixou ao meu alcance o cravo fresco, ainda úmido, mas impregnado de humores cancerígenos... Não foi sem propósito que me atirou aos terrores de uma morte lenta, dolorosa e cruel.


Mas o que me consome e exaspera é saber, nos dias de hoje, que fracassei. Que minha argúcia fora o fio condutor da minha própria ruína. Eu não sou o ás. Sou um homem a quem a humilhação pesa mais que um sudário. Sim, o velho não padecia de mal crônico algum, nem dependia de remédios para sobreviver. Somente agora percebo o que era evidente. A geladeira e os medicamentos eram uma farsa. Pura mise-en-scène.
A morte do Hiena, para o meu horror, fora absolutamente natural.

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