sábado, 8 de outubro de 2016

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A MISTERIOSA HISTÓRIA DO ARCO DO TELES.



Fonte: Mundo Tentacular
Com base no texto de: Guar Antiga

A Travessa do Comércio, na Praça XV, reduto da boemia carioca tornou-se famosa pelo arco construído sobre ela, no século 18 - o Arco do Telles.

O que pouca gente sabe (e quem sabe não comenta) é que o beco debaixo do arco testemunhou muita coisa estranha. Há quem o considere um lugar maldito e garanta que até hoje é mal assombrado. Dentre os diversos episódios estranhos que envolvem o lugar, veremos um dos mais terríveis: a história de uma das primeiras feiticeiras do Rio de Janeiro, certamente a mais cruel. Desculpem-me pelo relato forte e chocante. Todos os fatos que vou citar ocorreram e estão registrados em documentos antigos da polícia carioca.

Com a construção da Casa do Governo pelo governador Gomes Freire no Largo do Paço (atual Praça XV), as redondezas se valorizaram e passaram a ser frequentadas pela alta sociedade. Vendo isso, o português Antônio Telles Barreto de Menezes (juiz e proprietário de terras em Jacarepaguá e Baixada Fluminense) mandou construir uma série de casas para aluguel naquele logradouro, pelos idos de 1743.

Quando a obra chegou à travessa do Mercado do Peixe, o engenheiro Alpoim (responsável pelo projeto) teve que traçar um amplo arco sobre ela, para que a via dos mercadores não ficasse obstruída pela nova construção. Vem daí o apelido de "Arco do Telles". Os prédios foram todos alugados, ficando os térreos principalmente para os lojistas de secos e molhados; a casa maior, justamente a que ostentava o arco, foi ocupada pelo Senado da Câmara (equivalente hoje à Câmara dos Vereadores).

A má sina daquele local iria se revelar nessa época, mais exatamente em 20 de julho de 1790, na loja térrea próxima à rua Direita, onde existia uma loja de objetos usados denominada curiosamente de "O Caga Negócios". Um violento incêndio criminoso destruiu o prédio e deixou dezenas de feridos e dois mortos. O fogo atingiu o andar superior e consumiu o arquivo do Senado da Câmara, perdendo-se assim toda a documentação referente aos primórdios da cidade, inclusive os recibos e cobranças de foros (espécie de IPTU da época) e os registros gerais de imóveis. Além dos documentos, houve vítimas fatais e muitos feridos com graves queimaduras.

A partir desta tragédia, a área perdeu o viço e caiu em decadência. As famílias "de bem" abandonaram o local e as ruínas ainda chamuscadas, lambidas pelas chamas passaram a servir de refúgio para prostitutas, mendigos e perigosos marginais, como o Bentevi, o Juriti e o Olho de Gato. Também havia os loucos, como João Alberto Matias, autointitulado "Barão de Schindler", conhecido do povo como "Filósofo do Cais". Alto, de fraque verde, descalço, cachimbeiro e sempre com um alto boné de soldado com plumas. Seria descendente de uma nobre família alemã, combatente nas guerras napoleônicas. Um dia enlouqueceu de vez e foi recolhido ao manicômio.

Apesar de ter sido colocado no alto da passagem um oratório de Nosssa Senhora dos Prazeres, a baixaria era tão grande que moradores das proximidades decidiram remover a santa para a Igreja de Santo Antônio dos Pobres, onde ainda permanece.

Foi nesse ambiente nefasto, em meio à escória da cidade, que Bárbara dos Prazeres certa noite apareceu, rompendo a penumbra do beco do Arco dos Telles. Começava ali uma história de pavor que assombrou a cidade.

A Travessa do Mercado, em 1790, era um verdadeiro antro de prostituição do mais baixo nível. A polícia não entrava ali por nada. Dizem que mais de uma centena de mulheres faziam ponto na área, a travessa era escura e favorecia os "negócios" feitos em plena rua para quem quisesse ver. Muitas das mulheres viviam mancomunadas com violentos gigolôs que assaltavam e em certos casos surravam os clientes.  Em pelo menos um caso, teria havido uma degola. Dentre as mais famigeradas figuras do Arco do Telles nessa época, sobressaiu-se uma prostituta e depois feiticeira que atendia por Bárbara dos Prazeres. A maior parte dos dados abaixo foram registrados pela Intendência Geral de Polícia, criada pelo Príncipe D. João, em 1809.

Nascida em Portugal no ano de 1770, tinha 18 anos de idade quando veio com o marido para o Brasil. No Rio de Janeiro, apaixonou-se por um mulato e assassinou o esposo para viver livremente com o amante. Consta que o homem, porém, passou a explorar a jovem e chegou a consumir a maior parte dos seus bens. Durante uma briga do casal, Bárbara o matou. 

Marcada pelos assassinatos e sem meios de subsistência, restou à jovem de 20 anos ganhar a vida se prostituindo. Fez seu ponto exatamente ali, debaixo do Arco do Telles, onde angariou vasta clientela. Por quase 20 anos, ela considerou ter encontrado a sua vocação e o seu lugar na sociedade. Era bonita e atraente, e chegou, dizem as más línguas a atrair gente da sociedade e mesmo da nobreza que vinha de longe para conhecê-la. Por algum tempo, Bárbara teve uma casa fixa e condições razoáveis de vida. Mas sempre se envolvia com tipos que a exploravam e irremediavelmente acabava perdendo tudo.  

Seu nome aparece nos registros do Intendente Geral de Polícia, desembargador Paulo Fernandes Vianna, como Bárbara dos Prazeres (por causa do oratório no Arco do Telles) e também como Bárbara "Onça" (referência à sua ferocidade). As expressões: "cuidado que a bruxa está solta!" e "olha que a Onça está solta!" teriam se popularizado em virtude da fama que ela ganhou anos mais tarde.


Com o tempo a vida desregrada começou a cobrar seu duro preço. Bárbara havia envelhecido e já não atraía tantos homens. Os cabelos estavam embranquecendo, os dentes estavam podres e seus encantos, há muito haviam perdido o viço. Alguns riam de suas propostas e a ridicularizavam, ela cuspia e os xingava. Certa ocasião teria levado uma surra de dois escravos a mando de um senhor que se enfureceu com as suas maldições. A partir de então se queixava de dores nos ossos que a cada dia ficava mais insuportáveis.  É provável que tenha contraído sífilis e a fama de doente, somada a aparência desgrenhada afastava ainda mais os clientes.

Temendo cair na miséria e na solidão, desesperada, ela procurou um remédio nas muitas casas de feitiçaria e magia negra do Rio de Janeiro. Na época, não eram poucos os estabelecimentos que ofereciam respostas místicas para as mais variadas aflições: unguentos, passes, mandingas e patuás eram ofertados por "especialistas" que os prescreviam com a autoridade de doutores. Consumidos pela população, eles eram as soluções para a maior parte dos problemas. O que Bárbara buscava era uma poção que aliviasse suas dores e a tornasse bonita e jovem outra vez.

Uns dizem que custou todo o dinheiro que ela tinha juntado, outros, que o preço foi sua alma; de concreto, o que se sabe é que alguém lhe passou uma fórmula que teria o efeito desejado. Os componentes eram certas ervas que ela podiam juntar visitando as matas da cidade, mas o outro ingrediente era mais complicado. A receita exigia sangue humano ainda quente, melhor ainda, se fosse de criança.

Foi então que começou a raptar meninos pobres, filhos de escravos e mendigos. Andava pelas ruas sempre de olho em crianças sozinhas ou longe o suficiente das mães. Carregava no bolso da saia doces ou brinquedos que usava para ganhar a confiança dos pequenos e prometia mais se eles viessem até a sua casa. As crianças iam com ela, pois a feiticeira sabia se fazer de inocente e bondosa. Em sua tapera decadente na Cidade Nova, ela as esganava ou dava de beber uma dose de ervas misturada com cerveja amarga. Realizava então o sinistro sacrifício. Atava uma corda aos pés da vítima e a dependurava de ponta cabeça, içando-a sobre um balde ou tina colocada abaixo. Com uma faca afiada, cortava a garganta e entornava o precioso sangue, ainda quente correr dentro da tina onde depois se banhava. Em algumas ocasiões se banhava direto sob a torrente escarlate gargalhando loucamente.  


Não há números exatos, mas foram dezenas as vítimas que a feiticeira sacrificou em seu lúgubre ritual de rejuvenescimento. Ela contava vantagem para as colegas: dizia estar ficando mais bela, a pele mais alva do que antes e os cabelos mais escuros. Verdade ou não, sua loucura com certeza a fazia acreditar nos resultados do ritual. 

O pavor tomou conta da população do Rio de Janeiro a medida que crianças desapareciam sem deixar vestígios. Acreditava-se que um depravado estivesse agindo nas vielas escuras, raptando meninos e meninas para satisfazer suas vontades bestiais. Os cadáveres apareciam nos descampados e matas, simplesmente largados em lugares desertos. Os suspeitos eram muitos: um gigolô quase foi linchado, um escravo chegou a ser perseguido por uma turba furiosa e um comerciante foi apontado como culpado e teve de fugir antes de ser pego. Ao menos o medo serviu para dificultar a ação da assassina: as crianças passaram a ser trancadas em casa e a só sair na companhia de adultos. 


Bárbara precisava de vítimas e começou a ficar de tocaia na Roda dos Inocentes da Santa Casa, onde eram abandonados os bebês rejeitados pelas próprias mães. O bebê era colocado em uma espécie de bandeja giratória e um sino era tocado, fazendo a bandeja girar para dentro. Lá uma enfermeira apanhava a criança e a encaminhava para um orfanato. A roda evitou a morte de muitas crianças que antes eram simplesmente afogadas ou abandonadas nas ruas. Para Bárbara, a roda era uma chance de colocar as mãos em crianças que não podiam reagir e com quem ninguém se importava. 

Entretanto, em uma das vezes, ela foi vista tentando retirar um bebê da roda, e seus braços por pouco não ficaram presos no mecanismo giratório. Furiosa ela se afastou maldizendo a enfermeira que veio socorrer a criança.

Não se sabe ao certo como se descobriu o envolvimento de Bárbara nos crimes, se cogita que durante um momento de embriaguez ela tenha contado o que fazia a uma de suas colegas e que esta horrorizada foi até a polícia. A feiticeira logo se tornou a mulher mais procurada da cidade em todos os tempos, mas apesar de tudo, conseguiu ludibriar seus perseguidores fugindo para o outro lado da cidade onde se misturou com a população. Teria cortado os cabelos para se disfarçar e passou a usar um nome falso. Francamente ninguém reparava nela há muito tempo, e ninguém foi capaz de descrevê-la. 

Consta que teria vivido até 1830, quando simplesmente desapareceu próximo de completar 60 anos. Nesse ano, conta-se que apareceu um cadáver de mulher boiando próximo ao Largo do Paço, com as feições irreconhecíveis. Alguns afirmaram que era Bárbara dos Prazeres, mas ninguém soube dizer como ela teria morrido. 

O Arco continuou sendo um local mal afamado e perigoso, mesmo diretamente em frente ao Paço Imperial e fincado virtualmente no centro da cidade, até o começo do século XX, quando foi reformado pelo legendário Prefeito Pereira Passos durante o bota-abaixo. Não durou muito seu lustro, em pouco tempo se transformou em moradia de baixa renda, abrigando outras portuguesas famosas, Carmem e Aurora Miranda, que lá moraram durante a infância, entregando marmitas aos fregueses de sua mãe. Hoje a área foi valorizada novamente e a região do Arco do Teles é procurada nos fins de semana como região de entretenimento e lazer com restaurantes, casas de show e gafieiras sempre cheias.

O Arco do Telles hoje
Há quem suspeite que Bárbara dos Prazeres continua viva até hoje, graças ao segredo da fórmula de rejuvenescimento que não apenas tenha teria lhe conferido juventude, mas imortalidade. E mais: teria assumido a condição de feiticeira e aplicado a receita em alguns milionários, em troca de parte de suas fortunas.

Diz-se que ainda hoje, em certas madrugadas sem lua, quando já partiram os últimos garçons dos bares da Travessa do Comércio e cessou o movimento da boemia, escuta-se no beco a gargalhada de Bárbara Onça, a feiticeira, ecoando assustadoramente pelos vazios escuros do Arco do Telles.

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