A PRINCESA DE BAMBULUÁ
Luís da Câmara Cascudo
Havia na estrada que ligava duas cidades importantes uma grande pedra com uma gruta espaçosa, onde costumavam os viajantes pernoitar quando surpreendidos pela noite naquele deserto. Era muito freqüentada a paragem mas começou a aparecer uma visagem e os viajantes preferiam fazer uma curva a ter de passar pela pedra da margem do caminho.
Contavam que os homens eram acordados por uma voz celestial dizendo:
— Quem quer desencantar a princesa de Bambuluá? — Viam apenas o rosto de uma moça bonita como um anjo. Só o rosto. E era esse rosto que pedia socorro.
Muitos homens corajosos aceitaram o encargo mas desistiram das provas e fugiam espavoridos e molhados de sangue. O lugar foi ficando abandonado cada vez mais. Raramente passava uma criatura humana e assim mesmo bem depressa, olho no pé, olho no mato.
Numa tarde apareceu por ali um rapaz amarelo, franzino, muito cansado e faminto e se sentou na laje sem saber o que fazer de sua vida. Surgiu o rosto da moça encantada e perguntou se ele era capaz de desencantar a princesa de Bambuluá.
— Sou, — disse o amarelo; sou homem para enfrentar o perigo, mas quero comer, beber e descansar primeiro...
— Entre para a gruta, — disse o rosto.
O amarelo, que se chamava João, entrou e encontrou uma mesa cheia de comida variada e gostosa, uma boa rede armada e um banho morno preparado. João tomou o banho, mudou a roupa, comeu e deitou-se na rede. O rosto reapareceu dizendo:
— Hoje à meia-noite vai até aquela árvore que fica no alto da serra e deita-te no chão. Haja o que houver, não te levantes, não grites, não te defendas e apenas poderás rolar até aqui onde ficarás a salvamento.
João cumpriu à risca. Perto da meia-noite foi até a árvore que ficava bem longe da gruta e deitou-se. Logo depois viu três vultos mascarados, cobertos com umas capas escuras, conversando.
— Há tempos que não tropeço com gente deitada aqui, — dizia um. Outro comentava:
— Deve ter sido à custa de pau que ficamos livres.
Um deles bateu com o pé em João e gritou:
— Aqui está um embrulho! Vamos empurrá-lo! Chega o pau nele!
As pancadas, pontapés, choveram sobre o João que suportou calado e apenas, dando um jeito no corpo, começou a rolar, a rolar por cima de pedras, espinhos, galhos secos, debaixo da saraivada de golpes, dos três embuçados. Rolou, rolou, rolou, até que encostou na gruta. Imediatamente as figuras sumiram-se e João pôde sossegar, todo roxo de pancadas. A princesa de Bambuluá apareceu, já desencantada numa terça parte do corpo. Mandou preparar todo conforto para o amarelo que passou o resto da noite e o dia seguinte tomando coragem para a segunda prova.
Na noite escolhida, os três encapuzados surraram brutalmente o obre rapaz que não deu a menor demonstração de estar sentindo maus tratos. Rolou, rolou, rolou até a gruta e os três carrascos desapareceram.
João ficou recebendo curativos nas feridas e alimentando-se convenientemente até recobrar suas forças. Finalmente, na terceira noite, as provas foram cruéis. Os três fantasmas, furiosos pela insistência do candidato, moeram-no de pancadas e sacudiram-no dentro de um barreiro cheio de cacos de vidro e espinhos. João ficou picotado como um paliteiro. Ao romper da madrugada, os três algozes fugiram como sombras. A princesa de Bambuluá estava desencantada inteiramente, dos pés à cabeça, bonita como os amores. Tratou de João e pôde curá-lo em quinze dias.
Viajaram então para a cidade vizinha e ali chegando a princesa hospedou-se na casa de uma velha professora, rica e sábia, que a recebeu como ela merecia. A princesa disse a João:
— Vou embarcar amanhã para o reinado de Bambuluá e voltarei uma vez por ano para ver você. É preciso que o meu noivo estude a língua dos pássaros e tudo quanto seja necessário para um homem importante. No fim de cinco anos creio que já estará você preparado para acompanhar-me ao reinado do meu Pai e casar comigo. Não se esqueça de mim e lembre-se que minha visita anual durará apenas algumas horas. Estude muito.
No outro dia a princesa tomou o navio e foi embora para Bambuluá deixando João na casa da professora velha que tinha duas filhas lindas. Começou o rapaz a estudar tudo, especialmente a língua dos pássaros, fazendo progressos todos os dias. A velha ensinava com afinco e como ia gostando do moço pensou que seria melhor casá-lo com uma de suas filhas do que educá-lo para a princesa de Bambuluá que bem podia escolher outro noivo com facilidade.
Quando chegou o dia da princesa fazer a primeira visita, a professora preparou uma festa mas ofereceu a João um copo de vinho misturado com dormideira. O rapaz bebeu e caiu como morto, dormindo profundamente. A princesa de Bambuluá chegou, abraçou todos e não conseguiu falar com o noivo porque este dormia a sono solto. Pela tarde a princesa voltou para o navio e seguiu viagem.
João acordou e ficou muito triste com o sucedido mas continuou estudando cada vez mais. No outro ano, no dia em que a princesa voltaria a visitá-lo, a professora tornou a fazê-lo dormir com o vinho misturado com dormideira. A princesa olhou muito o noivo mas não pôde despertá-lo. Assim se passaram os cinco anos. A princesa de Bambuluá estava certa de que João não a queria, não estudara coisa alguma, vivendo nas festas. Tudo isso era dito pela professora velha. Na data da princesa vir, João, desconfiado, ficou de sobreaviso mas a princesa não veio. A professora disse que a princesa de Bambuluá era uma ingrata e que João devia casar-se com uma de suas filhas, moças prendadas e bonitas. João recusou, arrumou o que possuía e partiu.
Caminhou pela praia do mar muitos dias. Numa tarde deparou uma casa solitária e bateu palmas, chamando o dono. Depois de muito bater, ouviu uma voz macia, muito baixa, mandando que ele entrasse. João penetrou até a cozinha e viu um velhinho encarquilhado junto do fogo. Parecia ter mais de cem anos. Tratou João muito bem e o moço contou sua história. O velhinho disse:
— Eu sou o príncipe dos pássaros. Pode ser que algum dos meus soldados saiba onde fica o reinado de Bambuluá. Vou chamá-los...
Agarrou um tamborzinho e começou a bater, a bater, a bater. O céu ficou escuro de pássaros, de todos os tipos, cores e figuras que desciam para a casa, entrando pelas portas e janelas e cercando o velho com todo respeito. Assim que viam o rapaz, partiam de bico aberto contra ele, julgando-o inimigo do príncipe. O velhinho sossegava-os com um gesto. A todos o príncipe dos pássaros perguntou o caminho para o reinado de Bambuluá. Ninguém sabia.
— Durma hoje aqui e vá amanhã perguntar ao meu pai, o rei dos pássaros, onde fica o reinado de Bambuluá.
João agradeceu muito ao ao velhinho e seguiu jornada na manhã seguinte. Andou três dias e três noites. Avistou uma casinha na encosta de um morro. Subiu, bateu palmas e encontrou um velho, tão velho, que estava encolhido, encorujado, junto do fogo. Quase não falava. Recebeu-o muito bem, deu-lhe que comer e ouviu a história toda. Depois falou:
— Vou ver se os meus soldados sabem alguma cousa... — Pôs na boca um apito de prata e apitou, apitou, apitou. Emas, nambus, jacus, tamatiões, todos os pássaros grandes, que correm mais do que voam, compareceram, precipitando-se contra João porque pensavam que ele quisesse ofender ao rei dos pássaros. O velho-velhinho aquietava-os com a mão. Perguntou a todos e nenhum soube onde ficava o reinado de Bambuluá.
— Durma hoje aqui e amanhã procure meu pai, o imperador dos pássaros. Esse deve saber...
João agradeceu muito, dormiu e continuou sua peregrinação na manhã seguinte. Andou, andou, andou. No quarto dia de viagem viu uma casinha no alto de uma serra, lá em cima, muito alvinha. Subiu com dificuldade e bateu palmas um tempo sem fim. Finalmente entrou e deparou um velho, velho, velho, tão velho que vivia dentro de uma cabaça, enrolado em pasta de algodão e suspenso em cima do fogo. Recebeu João muito bem, deu-lhe que comer e beber, mostrou uma rede armada, ouviu sua história e prometeu auxiliá-lo. Tirou da cabaça uma gaita de perna de ema e soprou um som fininho, fininho, por alguns minutos.
Assim que ele acabou, ouviu-se um barulho de asas e o céu ficou preto, preto, preto, de urubus, aos milhares e milhares, cobrindo tudo. Rodearam a casa e foram entrando o velho como a um imperador. Queriam matar a João mas o imperador fazia um gesto e os urubus obedeciam. Nenhum conhecia o caminho para o reinado de Bambuluá. O imperador mandou-os embora e virou-se para um urubu velho que estava dormindo num canto, urubu, tão velho que não tinha mais penas e sim os canhões. O urubu ouviu a pergunta e respondei, estirando as asas enormes:
— Saiba o meu imperial senhor que o reinado de Bambuluá era os meus pastos. Fui muito lá. Fica depois do Inferno. Passa-se por cima, na quentura do fogo do diabo. Logo na descida está uma campina que olhos maus não podem ver, cheia de palácios bonitos, com muita gente agradável. É aí o reinado de Bambuluá.
O imperador dos pássaros disse a João que fosse comprar um boi de cinco eras, matasse, cortasse carne, tripas, bofe, coração, fígado, rins, quebrasse os ossos e trouxesse tudo para o urubu velho comer. Dentro de três dias estaria pronto para a viagem.
João comprou o boi de cinco eras, fez tudo quanto lhe ordenaram e colocou o montão de comida na frente do urubu velho que começou a comer sem parar, dia e noite. Ia comendo, comendo, e os canhões se abriam em penas e o urubu ia ficando empenado novamente. Dois dias depois já estava pronto e deu uns vôos, experimentando as asas e a força.
O imperador dos pássaros explicou a João que montasse o urubu, segurando dois cotos de penas como se fossem fueiros, e cruzasse os pés por debaixo da asa. Fechasse os olhos, só abrindo quando o urubu parasse. Havia de sentir um vento muito quente e o urubu faria muitas voltas. Era na ocasião em que passariam por cima das bocas do Inferno. João seguiu tudo direitinho e o urubu voou alto, alto, alto, empinando acima das nuvens. Depois de horas, desceu como um raio e começou a fazer curvas como que recuando e o rapas sentia um calor tão forte que lhe dava a impressão de estar pisando em brasas assopradas.
Bruscamente o urubu voou mais alto e desceu rápido pisando em terra. João abriu os olhos e viu que estava numa campina verde, com água corrente e perto de muitas casas bonitas. No cimo de um morro estava um palácio que era uma babilônia de grande.
O urubu despediu-se e voou. O rapaz veio andando, andando, até que alcançou as primeiras casas. Na janela de uma dessas estava uma velha, muito simpática que lhe perguntou quem era e o que estava fazendo no reinado de Bambuluá. João escondeu umas partes e contou outras, e a velha mandou-o entrar e acomodar-se com sua pequena bagagem.
O rapaz estava com fome mas a velha nada tinha que lhe oferecer. Era um antiga criada do palácio do rei. Este lhe dera aquela casinha, roupa e mandava todos os dias abundante tabuleiro de comida vinda da cozinha real. Pediu que João tivesse paciência e esperasse pelo meio-dia, hora em que o almoço havia de chegar.
Para distrair-se, João abriu a bruaca, tirou um violino e substituiu as cordas comuns por umas cordas encantadas que a princesa lhe havia dado. Música tocada nessas cordas fazia toda a gente dançar. João afinou o instrumento e começou a tocar uma música tão sacudida, tão feiticeira, tão requebrada, que a velha se peneirou toda e saiu dançando pelo meio da sala. Os homens que iam passando na rua paravam para ouvir e entravam forte no bailado, balançando o corpo e sapateando como uns danados. Tanta gente passasse e ouvisse como entrava para a casa e ficava perdida no meio da dança. Ao meio-dia chegou a empregada do palácio e do meio da rua se vinha desmanchando no compasso, equilibrando o tabuleiro. Arriou-o na mesa e pulou como uma maluca.
No palácio notaram a demora da criada e mandaram outra buscá-la. Esta o que fez foi aderir ao baile com todas as forças do corpo. Mandaram uma segunda, terceira, quarta e quinta e todas se misturaram com os dançarinos, saracoteando. Finalmente a rainha com algumas damas veio pessoalmente verificar em que tanta criada estava entretida. Nem andou meio caminho e já ficou bulindo com os pés e rainha e damas largaram-se no folguedo como umas desesperadas. O rei, vendo que o palácio estava deserto e a fome o apertava sem que o almoço aparecesse, saiu com os fidalgos à procura daquele mistério. Não escapou. Voou para o brinquedo como gato aos bofes. Dançaram, dançaram, dançaram. Até que o João parou o violino e todo mundo ficou mais morto do que vivo. O rei então disse:
— Amanhã ofereço uma festa no palácio, porque depois de amanhã vai casar minha filha. Você será o tocador. Não deixe de ir senão mando-lhe cortar a cabeça.
Dispersaram todos. A princesa não deixara seu aposento e quando as criadas contaram a história do baile, ficou surpreendida e desconfiou que fosse o músico, o seu antigo noivo, que a desencantara e a quem dera as cordas mágicas e fizera educar. Enviou uma criada de confiança e quando se convenceu que era mesmo João, mandou-o chamar e tudo combinou para a festa próxima.
O noivo oficial andava todo orgulhoso, bebendo ares, sem enxergar ninguém, porque ia se casar com a filha do rei.
No dia da festa, quando o salão real ficou que não cabia uma cabeça de alfinete, a princesa saiu, bonita como uma estrela do céu, e disse, em alto e bom som:
— Rei, meu pai, rainha, minha mãe, meus senhores e senhoras! Se eu perdesse a chave da minha mala e mandasse comprar outra para abrir, e antes de servir-me da nova encontrasse a velha, que deveria fazer?
Todos responderam:
— Use a velha, princesa, não se deixam amores velhos pelos novos...
— Pois, concluiu a princesa, aqui está meu noivo antigo, que sofreu por mim os maltratos, desencantando-me e estudando para ser digno do posto, vindo até aqui só para ver-me.
E entrando, saiu trazendo João pela mão, todo bem vestido, com jóia no dedo que parecia mesmo um príncipe.
Todos os convidados bateram palmas e o rei e a rainha abençoaram o casamento que se realizou no outro dia, com tanta festa que não teve fim.
Eu estava lá e vi tudo e trouxe um boião de doce mas na ladeira do Escorrega escorreguei, caí e quebrou-se tudo...
(Cascudo, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. Belo Horizonte, Editora Itatiaia; São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1986 (Reconquista do Brasil, 2ª série, 96), p.35-40)
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