O MITO DE FAUSTO
Sobre o nascimento do mito de Fausto
Fausto firmou-se como um mito moderno, nele o homem estaria disposto a perder-se para saber, para dominar a natureza e conhecer os segredos do universo. Ele representa o anseio humano pelo poder e pelo saber e também que saber é poder. Porém esta versão é fruto de uma longa jornada. Nos primeiros movimentos, quando do surgimento do mito, Fausto buscava só uma vida melhor, facilidades e riquezas, é a literatura que o vai espiritualizando, fazendo com que busque mais a ciência dos que os prazeres terrenos.
Desde a Bíblia já temos este mito punitivo, a idéia da vontade de saber e da perda da inocência como uma transgressão. Adão e Eva são expulsos por conhecer a diferença entre o bem e o mal, por ficar mais próximos dos deuses é que foram punidos. Em resumo: a sabedoria está com os deuses e o homem que se contente com um saber parcial, se ultrapassar certos limites pode esperar porque os céus enviarão um castigo.
Existiu de fato um mágico errante conhecido por Jörg Faust ou Faustus e com o prenome podendo ser também Georgius, conhecido popularmente por Doutor Faust.
Nasceu aproximadamente em torno de 1480 e faleceu ao redor do ano de 1540. Existem referências em documentos que nos asseguram que este homem viveu e era dotado de uma personalidade singular. Certamente tinha um grande poder de persuasão, conseguiu criar em torno de si uma aura de doutor em ciência ocultas, trabalhou como mágico e fazia horóscopos para pessoas importantes. Chamava-se a si mesmo de nigromante, ou seja dizia que se comunicava com os espíritos, o certo é que conseguia seu sustento com estes supostos poderes e, segundo seus inimigos, com outras charlatanices baratas. Poucos registros temos para saber exatamente como este personagem migrou da vida para o mito. De qualquer forma, os caminhos de sua vida deixam aberto esta possibilidade, estes supostos poderes que possuía demonstrava o auxílio de um saber poderoso e por que não satânico.
A lenda de Fausto se dá no mesmo momento do nascimento da imprensa, quando os primeiros livros a preços populares começam a circular. Graças também às insistências educacionais de Lutero, criou-se um público leitor na Alemanha. Um dos populares livros desta época, que é o grande responsável pela difusão do mito, é o Faustbuch (Livro de Fausto), a primeira versão conhecida é de 1587. Este primeiro Fausto que conhecemos é anônimo e suas sucessivas reimpressões vão aprimorando o mito, cada editor o aumentava ou ajustava conforme seu gosto, são conhecidas inúmeras versões diferentes que chegaram a circular naquela época.
Para o nosso trabalho junto ao texto freudiano é este primeiro Fausto que nos interessa. O mito vigente enquanto o pintor Christoph Haizmann vivia é aquele que busca o diabo para resolver os problemas mundanos, já que com a ajuda de Deus e dos caminhos corretos, não consegue uma inserção na vida da comunidade que esteja a seu contento. É importante frisar que não se tratava de uma obra livresca e erudita, o mito nasceu de uma forma popular, sendo assim era amplamente difundo e qualquer pessoa crescida na Alemanha da época conhecia a história do homem que vendeu sua alma. Os elementos que encontramos nos delírios e condutas de Christoph Haizmann são absolutamente coerentes com este mito, exceção feita ao pacto. No caso deste pintor não há menção ao que ele viria receber nesta troca e só ao que ele iria se comprometer. Era aceitável na época que alguém, num momento de fraqueza, pudesse vender sua alma, este sujeito era digno de pena e assim que ele é recebido pelo padre que o encaminham para Mariazell. É um pecado grave mas é um pecado possível de ser redimido e a igreja tinha espaço para que pessoas como ele encontrassem sua salvação procurando-a.
Este primeiro Fausto negocia sua alma com o diabo para receber da vida o que até então não conseguia mas já era um curioso. Um dos itens do contrato era que o diabo não o deixasse sem respostas, mas ao mesmo tempo parece que tinha os desejos de um camponês da época, finas comidas e bebidas, roupas suntuosas e divertia-se com pequenas trapaças e bebedeiras, ou seja, este Fausto ainda é muito parecido com o herói de fábulas folclóricas. O fim do livro já tem um caráter moralista, Fausto se dá conta no último ano que lhe restava da vida que levou e estava arrependido, aconselha a todos a não seguir seu caminho.
Nesta época, e especialmente na Alemanha, o diabo não estava confinado ao seu reino subterrâneo, ele está na terra tentando os homens, poderia estar em qualquer lugar, afinal, para Lutero a vida era uma luta perpétua contra as tentações do demônio. Ele estava sempre ao nosso lado, sempre pronto a nos derrotar e nos levar para seu reino ou seja, o diabo era uma presença, uma alteridade. Estamos no momento do nascimento do protestantismo, várias superstições e crendices são eliminadas, ao mesmo tempo o homem comum fica desprotegido. A igreja católica era cheia de rituais que ajudavam no cotidiano prático: para quem rezar, para quem pedir, qual ritual fazer, a religião católica tinha uma série de contra-feitiços mágicos porém revestidos de seriedade e autorizados pela igreja. O esvaziamento destas antigas formas sem criar outras deixa um buraco onde podem emergir um sem número de práticas mágicas alternativas.
O diabo, naquele tempo, não era muito exigente quanto às almas a serem adquiridas, parece que qualquer um poderia negociar com ele, ou seja não haveria pré-requisitos, bastava estar disposto e invocar o maligno para que este viesse negociar. Outra boa notícia, é que ao contrário de Deus, o diabo não tinha representantes terrenos, o contato era direto, ele em pessoa, ou um diabo gabaritado viria negociar. É bom lembrar que para comunicar-se com Deus era necessário um representante humano autorizado e é nesta época que o protestantismo esta se firmando, sendo uma das suas prerrogativas é justamente este contato direto com Deus sem a necessidade de sacerdotes. Vemos então que o aparecimento do protestantismo é o fundo sobre o qual pode se originar tal mito.
Este mito é tão enraizado na cultura alemã que existe uma versão infantil, uma novela pouco passada de um conto de fadas, trata-se da: A História Maravilhosa de Peter Schlemihl de Chamisso. Na verdade é um homem que não vendeu sua alma ao diabo, ele se vê as voltas com o pacto mas valentemente não aceita, mesmo que sua vida fique uma desgraça.
O sucesso alemão de Fausto (em dois anos dezesseis versões em prosa e uma em verso) se dá também nas traduções. Em inglês ele chega em 1572, em 1592 uma versão bem livre é publicada e esta última é a fonte onde Christopher Marlowe extrai os elementos de sua peça: A trágica história da vida e morte do Doutor Fausto. Esta obra limpa o caráter folclórico burlesco das versões alemãs e já nos trazem um Fausto como uma narrativa em forma dramática. Esta peça abre caminho para a versão mais acabada que é a de Goethe. O Fausto de Goethe levou toda a vida literária do escritor para ser concluída, 60 anos.
O Fausto que se extrai destas peças literárias já é outro, este sim de caráter mais erudito e é este que podemos atribuir como um dos mitos do moderno individualismo. Nele estão a vontade de saber, a solidão frente aos mistérios do mundo, o afastamento de deus e a encruzilhada frente a que caminho profissional trilhar. Este mito representa basicamente o quanto homem é livre para escolher seus rumos, mesmo que seja a perdição.
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